SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.
2. DESREGULAMENTAÇÃO DA AVIAÇÃO CIVIL.
3. ALOCAÇÃO DE SLOTS E AEROPORTOS COORDENADOS.
3.1 AEROPORTOS COORDENADOS.
3.2 SLOTS.
4. A RESOLUÇÃO N.º 682/2022 E A BUSCA DO EQUILÍBRIO ENTRE ESTABILIDADE E CONCORRÊNCIA.
5. CONCLUSÃO.
REFERÊNCIAS.
AUTOR: Paulo Henrique Stahlberg Natal
30/11/2022
Um país de largas dimensões territoriais[1], cuja população já ultrapassa a casa dos 200 milhões de habitantes, por certo clama pela utilização do modal aéreo como meio de integração nacional e desenvolvimento econômico, sobretudo diante da carência de sistemas ferroviário e rodoviário, como no caso do Brasil. A necessidade de transferência de pessoas mediante intercâmbio cultural ou profissional e o imperativo de integração da cadeia logística produtiva, revelam a importância do desenvolvimento da aviação civil.
Lado outro, não se duvida da relevância socioeconômica do setor em níveis nacional e estadual, apresentando o seu impacto em termos de produção, emprego, renda e tributo em cada uma das vinte e sete unidades da federação.
Com efeito, segundo dados da IATA[2], as companhias aéreas, os operadores aeroportuários, as empresas que operam nos aeroportos (restaurantes, lojas, etc.), fabricantes de aeronaves e os prestadores de serviço de navegação aérea empregam 167.000 pessoas no Brasil. Além disso, ao comprar bens e serviços de fornecedores locais, o setor promove outros 253.000 empregos.
Estima-se que o setor contribua com 119.000 empregos por meio dos salários pagos a seus funcionários, alguns dos quais ou todos são posteriormente gastos em bens e serviços de consumo. Cerca de 2,4 bilhões de dólares são gastos com os salários dos empregados do setor. Calcula-se que os turistas que chegam ao Brasil por via aérea e que gastam seu dinheiro na economia local promovem 300.000 empregos adicionais.
No total, 839.000 empregos são gerados pelo transporte aéreo e pelos turistas que chegam por via aérea.
Além da geração de empregos, estima-se que a indústria do transporte aéreo, incluindo as companhias aéreas e sua cadeia de suprimentos, respondam por US$ 12,3 bilhões do PIB no Brasil. O consumo gerado pelos turistas estrangeiros corresponde a US$ 6,5 bilhões do PIB do país, totalizando US$ 18,8 bilhões. No total, 1,1% do PIB brasileiro vem do transporte aéreo e dos turistas estrangeiros que chegam por via aérea[3].
Do ponto de vista arrecadatório, não menos importante se mostra o setor aéreo integrado com o turismo. Segundo dados da ABEAR, para o ano de 2019, o impacto econômico do transporte aéreo no total de tributos girava em torno de R$ 32,6 bilhões - 1,3% do Brasil.
Apenas para que se tenha ideia da dimensão do crescimento e importância do setor de transporte aéreo, entre os anos de 2002 e 2019 o tamanho do mercado doméstico no Brasil (medido em RPK) cresceu 2,51 vezes enquanto o PIB cresceu apenas 1,46 vez[4].
Do ponto de vista operacional, os números revelados pelo Anuário do Transporte Aéreo de 2019[5] (ano anterior à Pandemia de Covid-19), trazem a dimensão do funcionamento desse setor. Somando-se os mercados doméstico e internacional, foram realizados 951 mil voos regulares e não-regulares, valor um pouco abaixo do observado em 2010 e que representa queda de 1,7% com relação a 2018. Já o número de passageiros transportados apresentou seu terceiro ano consecutivo de alta, após queda em 2016, e atingiu 119,4 milhões de passageiros domésticos e internacionais, maior marca da série.
No aspecto atinente à infraestrutura aeroportuária, os terminais que tiveram o maior número de decolagens no mercado doméstico em 2019 foram os de Guarulhos (12,6%), Congonhas (10,7%), Brasília (7,3%), Campinas (6,2%) e Confins (6%). Entre esses aeroportos, Brasília e Congonhas apresentaram redução no indicador em comparação com os dados apurados em 2018, de 10,5% e 1,9%, respectivamente. Entre os 20 principais aeroportos brasileiros, o de Manaus foi o que apresentou a maior alta no último ano, com 9%.
Na distribuição de passageiros pagos transportados no mercado doméstico no ano passado, o aeroporto de Guarulhos obteve fatia de 14,5% do total registrado, seguido por Congonhas (11,7%), Brasília (8,4%), Confins (5,4%) e Galeão (4,9%). Entre os principais terminais do país, o Galeão apresentou a maior variação negativa em comparação com os dados de 2019, com 10,2%. O maior crescimento foi registrado no aeroporto de Campinas, da ordem de 14,4%.
Esses números servem para demonstrar o papel fundamental que o transporte aéreo desempenha na atividade econômica do País. De outra parte, indicam também uma relevante concentração de operações e passageiros transportados em apenas cinco aeroportos do Brasil, respondendo eles por 42,8% dos números de decolagens no mercado doméstico para o ano de 2019.
É nesse contexto de sobreutilização de determinadas infraestruturas aeronáuticas que se coloca a discussão tratada neste estudo.
É fato que a despeito da desregulamentação experimentada pela aviação civil no Brasil nas últimas três décadas, ela não foi acompanhada pelo desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao crescimento da infraestrutura aeroportuária na mesma medida em que fora estimulada a atividade de transporte aéreo regular. Isso acabou por gerar problemas experimentados sobretudo a partir do ano de 2007 com a ocorrência do que se denominou chamar de “apagão aéreo”, gerador de atrasos e infindáveis filas e cancelamentos de voos nos mais variados aeroportos brasileiros.
A vinda dos grandes eventos esportivos para o Brasil (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016) também acenderam o alerta relativo à necessidade de adequação das infraestruturas para atendimento das operações aéreas que se avizinhavam.
Foi somente a partir de 2011 que se instaurou nova política de exploração dos serviços aeroportuários, tendo início, então as rodadas de concessão de aeroportos brasileiros para exploração pela iniciativa privada, quebrando assim o monopólio até então existente desempenhado pela INFRAERO. No entanto, os gargalos de utilização da infraestrutura aeroportuária se fazem presentes ainda hoje, com poucos aeroportos servindo grande parte dos voos e passageiros transportados pelo País, o que gera inevitavelmente uma escassez desse recurso, atraindo a necessidade, portanto, de intervenção estatal na sua regulação.
Desde o início do século XX, sob os aspectos jurídico e econômico, a navegação aérea no Brasil sempre foi vista como um serviço público de titularidade da União. Enquanto tal e porque não explorada diretamente pelo Estado, sempre se delegou sua execução a particulares mediante concessão.
Ocorre, contudo, que a partir dos anos 1990 o setor de transporte aéreo começou a experimentar mudanças, especialmente sob o influxo das tendências liberalizantes e de desestatização que se espraiavam na discussão política nacional naquele momento histórico.
A doutrina especializada costuma dividir esse processo contínuo de abertura do mercado, em fases, cujos períodos históricos são relativamente determinados. A regulação do transporte aéreo brasileiro, assim, comporta três macro períodos: desde o início dos anos 1920 até por volta de 1950; depois entre a década de 1960 até começo dos anos 1990; e por fim o período atualmente vivenciado desde aquele último marco até os dias atuais.
É verdade o atual marco regulatório veiculado pela legislação de regência (Código Brasileiro de Aeronáutica e Lei de Criação da ANAC) pode ser definido como sendo de livre-iniciativa. Não é menos verdade que a despeito das burocracias administrativas decorrentes da imposição da regulação técnica, a demandar dos operadores aéreos a necessidade de obtenção de autorizações, homologações, licenças, habilitações e outros atos administrativos congêneres, o atual mercado de transporte aéreo pode ser considerado livre, de modo que qualquer companhia tem a liberdade de nele ingressar e permanecer (ou não), assim como de fixar as condições dos serviços que serão prestados e o respectivo preço. Porém, nem sempre foi assim, conforme se adiantou alhures.
Num primeiro momento, quando a aviação ainda era incipiente ao final da Primeira Guerra Mundial, viveu-se um período que costuma ser classificado como de liberdade econômica. Claramente, não o era com as características ínsitas desse regime hoje conhecido, pois o cenário econômico das nações e os respectivos modelos de intervenção estatal no Domínio Econômico sofreram grandes transformações ao largo de um século.
Nessa fase primeva não se falava ainda verdadeiramente em formação de mercado. A política então adotada além de autorizativa da exploração dos serviços aéreos, ainda permitia que as empresas estrangeiras praticassem a cabotagem, ou seja, a navegação entre cidades do território nacional. A própria falta de infraestrutura havida nesse recorte histórico fez com que a construção e exploração dela se desse pelas próprias companhias aéreas operadoras.
Durante o transcorrer dessa fase embrionária da aviação civil, as nações perceberam na aviação seu caráter estratégico, fosse como instrumento auxiliar de administração das colônias, fosse pela criação de zonas de influência, fosse, ainda, para ampliação de mercados. Por essas razões, inclusive, que por muito tempo foram vistas operações de Companhias Aéreas Estatais, justamente por ser uma atividade bastante ligada à própria soberania e interesses políticos e econômicos.
Essa percepção levou ao aprimoramento da legislação da época, sendo certo que esta primeira fase regulatória pode ser razoavelmente demarcada com o fim da Primeira Guerra Mundial. Desde meados da década de 1920, Decretos foram promulgados na tentativa de já serem adotados os primeiros princípios da Convenção de Paris de 1919, reconhecendo-se a soberania do espaço aéreo, a exemplo.
Citem-se aqui os Decretos n.º 16.983, de 22 de julho de 1925 e n.º 20.914, de 06 de janeiro de 1932, os quais estabeleceram que as aeronaves teriam nacionalidade do país em que estivessem registradas, sendo que a matrícula somente seria permitida a cidadão brasileiro ou a companhia de nacionalidade brasileira idônea, sem privilégios ou monopólios de qualquer espécie. Também por intermédio das regras baixadas nesse período, as empresas privadas que pretendessem realizar a navegação aérea no Brasil deveriam obter prévia concessão do Governo para operar. Igualmente essas normas estabeleceram a competência do governo federal para regular a aeronáutica civil no País, por intermédio de Departamento próprio ligado ao Ministério de Viação e Obras Públicas.
De modo sintético, nessa primeira metade do século XX, a aviação ainda estava em fase bastante prematura, de maneira que o mercado funcionava por uma lógica de liberdade econômica a despeito da discricionaridade do Governo na outorga das respectivas concessões de linhas aéreas.[6]
Até aproximadamente o final da década de 1950, pode-se considerar que o Brasil ainda vivia uma fase pioneira da aviação; a partir de então, contudo, o setor passou por duas grandes reformas regulatórias. A primeira resultou numa regulação estrita, implementada ainda nos anos 1960. A segunda, introduzida já a partir do início e meados dos anos 1990, inaugurou um período de desregulamentação do mercado.
Com o final da Segunda Grande Guerra Mundial inaugura-se um novo ciclo regulatório na aviação civil, não apenas brasileira, mas também global, sendo sinal mais evidente desse início de Era, a Convenção de Chicago de 1944 e a fundação da ICAO. A partir dos primeiros passos para unificação internacional nas regras de navegação aérea, bem assim diante do excedente de aeronaves no período posterior ao conflito armado, o desenvolvimento da aviação comercial experimentou sensível aumento e célere avanço tecnológico.
A excessiva oferta ao mercado de aeronaves militares utilizadas na Guerra, com potencial de utilização no transporte civil, levou à desenfreada criação de companhias aéreas, bem assim a respectiva quebra de muitas delas.
Diante desse quadro, fixou-se a premissa de que o excesso de oferta comprometeria a segurança e a saúde financeira do setor, de modo que se instaurou diretriz regulatória de não competição ruinosa entre as companhias, também conhecida como ‘competição controlada´. Ao longo da década de 1960 foram realizadas Conferências Nacionais de Aviação Civil (CONAC) nas quais positivou-se a ideia de estabilização do mercado mediante política de redução do número de agentes exploradores dos respectivos serviços de transporte aéreo e restrição à entrada de novos atores.
Essa política regulatória de competição controlada continha diretrizes relativas a: a) limitação de participação de capital social estrangeiro nas companhias aéreas; b) discricionaridade exacerbada do Governo Federal, que poderia indeferir a concessão ou autorização ao argumento de da vaga expressa de “não atendimento ao interesse público”, poderia modificar frequências, horários, rotas ou quaisquer outras condições a qualquer tempo, sob argumento de enfrentamento da competição ruinosa; c) controle tarifário.
Emblemática normativa desse período histórico foi a edição do Decreto- n.º 72.898/1973, que manteve forte a intervenção estatal na atividade de transporte aéreo, valendo-se de cláusulas abertas como “atendimento ao bem público”, “a juízo do governo”, “quando o interesse público exigir”, dentre outras fórmulas de mesmo grau de abstração e subjetivismo. Foi por esse Decreto, ainda, que se suprimiu completamente a liberdade econômica ao se outorgar sem maiores critérios o direito de exploração dos serviços aéreos por apenas quatro companhias (Varig, Vasp, Cruzeiro do Sul e Transbrasil).
Exemplo bastante conhecido da viva intervenção estatal discricionária ocorreu no ano de 1965, quando a Panair do Brasil, principal operadora brasileira, teve sua concessão cassada pelo governo do regime militar; em seguida, ainda de forma bastante discutida historicamente, teve sua concordata indeferida e a falência decretada.
Toda essa política de controle rígido da exploração da atividade de transporte aéreo perdurou entre a década de 1960 até praticamente início dos anos 1990.
Mesmo a superveniência do novo Código Brasileiro de Aeronáutica de 1986, que substituiu o antigo Código Brasileiro do Ar de 1966, não foi o bastante para afastar as práticas intervencionistas. É verdade que houve alguma evolução ao se retirar da lei a possibilidade de que os novos pedidos de concessão de exploração das linhas aéreas fossem indeferidos com base no “interesse público”, assim como também foi limitada a intervenção estatal apenas aos casos de ameaça à continuidade dos serviços ou segurança do transporte aéreo. De outro lado, contudo, foram mantidas as previsões de limitação de participação de capital estrangeiro, necessidade de prévia aprovação de estatutos sociais das companhias pretendentes e manutenção da proibição de concordata.
Em que pese o longo período de forte controle estatal no setor da aviação civil, fatores macroeconômicos deram início a pequenos, porém importantes movimentos liberalizantes.
As crises econômica e do petróleo, vivenciadas nos anos 1970 – sobretudo na Europa e Estados Unidos - conduziram a um outro modelo de relação entre Estado e Economia; esse período foi marcado pela recessão econômica, crise energética, alta inflação, redução de competitividade e desemprego.
O intervencionismo estatal até então vigente não resistiu ao esvaziamento do modelo de Estado como protagonista do processo econômico, porque se constatou que não detinha mais capacidade econômica de manutenção de investimentos, sobretudo nas áreas de social e de infraestrutura.
Essa situação de elevado endividamento advindo das largas competências impostas pelo Estado social democrático acabou levando a uma reformulação da atuação estatal no campo econômico. Em sentido contrário às políticas econômicas do bem-estar social que dominavam o cenário desde a década de 1920, o avanço da doutrina capitalista neoliberal pregava uma menor intervenção estatal no domínio econômico, atuando apenas por exceção, nas atividades estritamente essenciais, passando os demais campos de atividades ao domínio privado.
Essa transformação global nos regimes democráticos ocidentais também alcançou o Brasil. Durante a década de 1990, a Constituição Federal de 1988 sofreu alterações por intermédio de emendas, indicando uma mudança no aparato institucional, reduzindo-se a atuação estatal direta na atividade econômica e ampliando-se o papel do Estado enquanto regulador dessas atividades em sentido amplo. Estas modificações, inclusive, levaram ao surgimento de órgãos de defesa da concorrência e das agências reguladoras dos serviços públicos privatizados. [7]
Essa mudança de formulação do aparato estatal com rediscussão de suas funções também espraiou efeitos no campo do transporte aéreo, de modo que os novos ares do neoliberalismo e da reabertura democrática deram início ao verdadeiro período de desregulação do transporte aéreo no País.
Assim, passando à fase seguinte do processo (des)regulatório da aviação civil, tem-se enquanto marco inaugural da desregulação a V Conferência Nacional de Aviação Civil (CONAC), datada de 1991, a qual fixou bases e premissas importantes para o processo de liberalização e desregulação no âmbito do transporte aéreo regular de passageiros e cargas. Esse processo de transformação se densificou ao longo da década de 90, atingindo seu ápice na primeira metade dos anos 2000. Por isso se costuma se subdividir este período em três etapas ou rodadas de desregulação, conforme os anos que servem de marco para tanto: 1992, 1998 e 2000.
Essa Conferência Nacional de Aviação de 1991, apresentou ao Governo uma orientação liberalizante em linha com as tendências que já vinham sendo observadas em diversos outros países do mundo, focando na liberdade e concorrência, assim como no interesse do usuário dos serviços.
Já no final dos anos 1990, houve a retirada das bandas tarifárias e controle nos preços, assim como foi afastado o direito exclusivo das empresas regionais operarem as denominadas linhas aéreas especiais.[8]
A partir do ano de 2001, inicia-se outra etapa da desregulação do setor aéreo, oportunidade em que ocorreu a total liberação de preços, flexibilização dos processos para entrada de novas companhias e de pedidos de frequências de voos. Nesse sentido podem ser citadas as Resoluções n.º 07, 08 e 09, do CONAC (Conselho de Aviação Civil).
É verdade que no ano de 2003 houve tentativa de nova regulação mediante instituição de políticas interventivas na tentativa de criar alguma proteção às históricas empresas aéreas que enfrentavam enormes dificuldades financeiras e operavam em verdadeiro estado pré-falimentar. Porém, esse rápido ensaio de rerregulação findou-se já no ano de 2005.
Neste ano de 2005, foi instituída a Agência Reguladora do setor, a ANAC, cujo objetivo, na forma do artigo 2º, da Lei n.º 11.182/2005, é o de regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária, nos termos das políticas estabelecidas pelos Poderes Executivo e Legislativo. A lei instituidora da agência afirmou em seu artigo 49 a liberdade de exploração da atividade e a liberdade tarifária.
Porém, a despeito de toda evolução vivenciada no âmbito da atividade regulatória estatal no campo econômico das atividades aéreas, é certo que o arcabouço legislativo não se mostrava mais adequado e consentâneo com a realidade econômica e o dinamismo do mercado. Apesar de diversas mudanças terem sido implantadas, a densa regulamentação do setor em vários níveis legislativos, criaram certa insegurança jurídica.
O Código Brasileiro de Aeronáutica, marco regulatório do Setor Aéreo no Brasil, datado do ano de 1986, é anterior a outras importantes balizas legislativas que com ele dialogam, como o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, o Código Civil, a Lei criadora da ANAC, e sobretudo, é anterior à própria nova ordem Constitucional inaugurada com a Constituição Federal de 1988.
Mesmo no âmbito infralegal muitas das normas técnicas de regulação e regulamentação ainda aplicáveis encontram-se inseridas em documentos fundados no poder regulamentar exercido pelo extinto Departamento de Aviação Civil (DAC), uma estrutura então pertencente às Forças Armadas.
Todo esse arcabouço normativo até então produzido pelos órgãos estatais no âmbito da aviação civil se encontra em constante modificação e está, pari passu, sendo atualizado e substituído pelos regulamentos expedidos pela Agência Nacional de Aviação Civil, atualmente a entidade a quem cabe regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária no País.
No entanto, a despeito da evolução na política liberalizante e de desregulação do Setor Aéreo Brasileiro, o quadro normativo que se apresentava até a promulgação da Lei n.º 14.368/2022 (fruto da conversão da Medida Provisória n.º 1.089/2021 – denominada de “Voo Simples”), era no sentido de que a exploração do transporte aéreo regular de passageiros e cargas era um serviço público, sujeito à concessão pelo Poder Estatal (União). Assim dispunham principalmente os artigos 174, 175 e 180, todos do Código Brasileiro de Aeronáutica.
Porém, em face de inúmeras incompatibilidades de ordem prática, jurídica e econômica, já não se podia mais sustentar que tais atividades de transporte aéreo eram essencialmente serviços públicos concedidos pela União.
Seguindo nessa quadra, a Lei n.º 14.368/2022, promoveu significativa alteração no Marco Regulatório da Aviação Civil Brasileira, e o fez para, dentre outras importantes prescrições, fixar que o transporte aéreo regular de passageiros e cargas é uma atividade econômica de interesse público, não mais um serviço público (artigo 174-A, C.B.A.). Também se fixou que a exploração dos serviços aéreos é aberta a qualquer pessoa física ou jurídica, desde que observadas as disposições e normas da autoridade de aviação civil (art.193-A).
Seguindo na ordem de ideias liberalizantes, a mudança legislativa alterou as regras e facilitou a entrada de companhias estrangeiras no País. Com efeito, para uma empresa estrangeira operar no país, ela precisava seguir alguns requisitos, como ser designada pelo país de origem, ter autorização de funcionamento e ter autorização para operar. Esses documentos aumentavam o prazo e não agregavam valor ao processo em si. Além disso, o C.B.A. não tratava das empresas estrangeiras não regulares. A partir das mudanças legislativas, não se faz mais necessária a autorização de funcionamento das empresas estrangeiras, bastando se constituir juridicamente à junta comercial e dar entrada com o processo para operar no país.
Todo este longo processo de desregulação econômica vivenciada no transporte aéreo rendeu importantes efeitos ao mercado, sendo os principais: o aumento da concorrência, a redução de preços, o incremento da oferta de voos e rotas e a busca pela proteção do destinatário final de tais serviços, que passam a ser vistos não como mero usuários, mas consumidores.
A doutrina especializada[9] mostra que a densa desregulação operada nos Estados Unidos da América, a exemplo, gerou uma grande onda de criação de companhias aéreas e por consequência um elevado grau de competitividade, que por sua vez passou a exigir eficiência dos operadores.
Dentro dessa ideia de operação eficiente, como forma de melhor aproveitar e racionalizar os recursos, propagou-se no ambiente das Companhias Aéreas o modelo de exploração de estratégia de redes denominado hub-and-spoke. Esse modelo nada mais é senão a conexão de origens e destinos através de um ponto intermediário. Ele se contrapõe ao modelo de ponto-a-ponto.
A estratégia hub-and-spoke, gera fluxo mais eficiente, viabilizando maior ocupação dos voos nas rotas com destino ou origem nos denominados hubs; isso permite, consequentemente, a utilização de aeronaves maiores, o que acarreta, por sua vez, redução de custo por passageiro transportado[10].
A despeito desse modelo de operação estratégica trazer importantes ganhos de eficiência para a empresa e integração à cadeia logística, mediante possibilidade de locomoção aérea entre diversos pontos do território sem que haja necessidade de um voo saindo de cada ponto com destino direto a outro, não é menos verdade, também, que ele traz pontos e fatores negativos.
Dentre esses efeitos gerados pela operação hub-and-spoke, podem ser citados, pelo ponto de vista do usuário consumidor, a falta de comodidade em se voar diretamente de um ponto de seu interesse a outro, tendo que submeter-se a uma ou até várias conexões para se chegar ao destino desejado.
De outro lado, do ponto de vista econômico, há inegavelmente um aumento de concorrência que pode alcançar em determinadas situações até mesmo um efeito predatório, com redução de receitas e quiçá afetando a segurança operacional, tudo como forma de manter-se no mercado competitivo.
Porém, no presente artigo, o que se destaca, são os efeitos operacionais sob o aspecto da infraestrutura aeroportuária. Isso decorre do fato de que as Companhias Aéreas ao explorarem os transportes mediante essa estratégia, necessitam fixar seus hubs em determinadas cidades e aeroportos. A rigor, são locais geograficamente estratégicos, situados em aglomerados urbanos onde a dinâmica social e econômica são igualmente proveitosas e favoráveis ao transporte de passageiros e cargas, de modo que esses aeroportos já são densamente utilizados.
Em que pese esse modelo traga realmente ganhos de produtividade, concorrência, eficiência e economia, não é menos verdade que acaba por sobrecarregar as estruturas aeroportuárias e de navegação aéreas desses grandes centros escolhidos pelas empresas como bases operacionais (hubs), onde seus voos vindos de diversos pontos do território se encontrarão e de onde partirão a outros destinos (spokes), fazendo o fechamento e conexão da malha atendida.
Imagine-se, portanto, nesse cenário, que diversas Companhias pretendam operar em determinado aeroporto estratégico, fixando-o como verdadeiro hub para redistribuição de seus voos. Isso inexoravelmente leva à escassez desse produto chamado infraestrutura aeroportuária.
É diante desse cenário que surge a necessidade de intervenção regulatória para garantir o uso dos espaços aeroportuários e do espaço aéreo. O grande desafio, contudo, é regrar o acesso das empresas de modo a manter a concorrência sem prejudicar a segurança estratégica (administrativa e jurídica) sob o aspecto da previsibilidade para os operadores.
Conforme explorado anteriormente neste artigo, percebemos que a desregulação do transporte aéreo trouxe como consequência o aumento da concorrência no setor mediante ingresso de novas companhias; acarretou ainda aumento da eficiência e da produtividade; tudo isso contribuiu para o aumento da oferta de voos e rotas gerando igual incremento na demanda e no número de passageiros transportados. Em resumo, a liberdade econômica na exploração do transporte aéreo levou ao desenvolvimento do setor.
Entretanto, o crescimento da capacidade aeroportuária não acompanhou o constante aumento da demanda pelos serviços de transporte aéreo. Percebeu-se que a competitividade entre as Companhias levou à utilização da estratégia de malha aérea fundada no conceito de hub-and-spoke, mediante acréscimo relevante na ocupação de grandes aeroportos. O resultado desse conjunto de ações e fatores foi a geração de escassez de infraestrutura aeroportuária.
Essa escassez estrutural pode ser analisada sob três principais aspectos: capacidade de terminal, de pátio de aeronaves e de pista(s) de pouso. Soma-se, ainda, em algumas localidades, a limitação da própria ocupação do espaço aéreo (tráfego aéreo) em rotas demasiadamente congestionadas. Contudo, as principais e maiores limitações, sobretudo no Brasil, atualmente, estão ligadas à limitação de pistas, seguida de terminais e pátios.
Como é cediço, a construção de novas pistas é operação extremamente complexa sob os aspectos técnico e administrativo; costumam demandar grande área livre para implantação, o que normalmente não há nos grandes centros urbanos e importantes aeroportos que lhes servem diretamente. No mais das vezes, portanto, mostra-se inviável sob o prisma econômico e social, já que as mudanças necessárias implicariam altíssimos investimentos e até mesmo grandes desapropriações, o que por certo levaria a inquietações sociais.
Nesse cenário, então, evidencia-se que alguns aeroportos não possuem capacidade de infraestrutura para atender a todos os que querem nele operar, seja por sua localização geográfica, importância econômica, demanda, dentre outros aspectos.; não há espaço físico e cronológico para atendimento a todos operadores que pretendam ali realizar pousos, decolagens e operações de carga e descarga, sobretudo face às normas de segurança operacional da atividade aérea.
A decorrência negativa dessa realidade é evidenciada pela constatação da escassez de infraestrutura e pelos congestionamentos em referidos aeroportos estratégicos.
Com efeito, na ausência de regras claras e equilibradas, de modo a estabelecer quais as capacidades e quem possui o direito de explorá-las, a consequência havida certamente será o congestionamento. De outro lado, essa limitação de uso acarreta, em alguma medida, o reconhecimento da escassez e por seu turno implica incapacidade de o mercado atender a eventual aumento de demanda.
Nesse panorama, então, surgem as figuras do que se convencionou denominar aeroportos coordenados e slots, cujos conceitos e definições legais serão a seguir exploradas.
O atual marco regulatório da aviação no País, o Código Brasileiro de Aeronáutica (C.B.A.), foi recentemente reformado pela Lei n.º 14.368/2022, que por seu turno implementou de forma ainda mais intensa a liberdade econômica no setor.
Por certo, a redação do artigo 174-A combinada com o artigo 193-A, ambos do C.B.A. nos demonstram que atualmente não existem mais barreiras à entrada de novas Companhias Aéreas. Buscou-se o alinhamento às melhores práticas internacionais de maneira a criar um ambiente regulatório e jurídico favorável a contestabilidade do mercado.
Em complemento, o artigo 48, da Lei n.º 11.182/2005, assegura às empresas prestadoras de serviços aéreos domésticos a exploração de quaisquer linhas aéreas, mediante prévio registro na ANAC, observadas exclusivamente a capacidade operacional de cada aeroporto e as normas regulamentares de prestação de serviço adequado editadas pela Anac.
Nota-se, portanto, que a despeito da liberdade de entrada no mercado, devem ser observadas as normas regulamentares da atividade que se pretende explorar e principalmente, a capacidade operacional de cada aeroporto. Esta segunda condicionante se entrelaça com o tema ora proposto na medida em que a capacidade operacional dá margem à criação dos slots, em aeroportos congestionados.
Entendemos estar neste artigo 48, da lei n.º 11.182/2005, a base jurídica fundamental para a regulação da infraestrutura aeroportuária. A própria norma criadora da ANAC enunciou de forma expressa no artigo 8º, competir à Agência regular as autorizações de horários de pouso e decolagem de aeronaves civis, observadas as condicionantes do sistema de controle do espaço aéreo e da infraestrutura aeroportuária disponível, assim como compor, administrativamente, conflitos de interesses entre prestadoras de serviços aéreos e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária (incisos XIX e XX).
Diante desse quadro, portanto, foi editada logo no ano seguinte à promulgação da lei criadora da ANAC, a primeira normatização do assunto, ou seja, a Resolução n.º 02, de 03 de julho de 2006/ANAC, para regular o uso dos slots. Quase uma década mais tarde, em julho de 2014, esta Resolução n.º 02/2006 foi revogada pela Resolução n.º 338/2014. Ao depois, no ano de 2018, a Resolução n.º 487/2018, alterou alguns pontos da regulamentação prevista na Resolução n.º 338/2014.
Tais regras foram se sucedendo no tempo até que sobreveio no ano de 2022, a Resolução n.º 682, que atualmente regulamenta a coordenação de aeroportos e dispõe sobre as regras de alocação e monitoramento do uso da infraestrutura aeroportuária.
Conforme vimos linhas atrás, a escassez de infraestrutura aeroportuária faz com que determinados aeroportos fiquem sobrecarregados, de maneira que a demanda por sua utilização ultrapassa sua capacidade operacional. Essa realidade impõe a necessária intervenção do órgão incumbido de controlar a disponibilização de espaços; no caso do Brasil, tarefa esta desempenhada pela ANAC[11], com objetivo minimizar os efeitos da escassez de infraestrutura, visando à promoção do uso eficiente da capacidade aeroportuária declarada.
Portanto, a coordenação de aeroportos é atividade intrinsicamente jungida à alocação de slots, porque como visto alhures, somente há necessidade de regular o acesso à infraestrutura quando ela é insuficiente ao atendimento de todos os interessados; logo, é imperativo que antes de alocar horários de pouso e decolagem (slots), os respectivos aeroportos sejam declarados como coordenados.
Devido ao fato de nem todos os aeroportos possuírem intenso movimento, a normatização fixou uma gradação na escala de utilização das infraestruturas aeroportuárias, conforme se extrai do Capítulo II, da Resolução n.º 682/2022. Nesse sentido, o artigo 3º dividiu os aeroportos conforme o grau de ocupação da sua capacidade, em três categorias ou níveis.
Nível 1, é o aeroporto cuja capacidade aeroportuária é geralmente adequada para atender às demandas de operações aéreas solicitadas por empresas de transporte aéreo e operadores aéreos; nível 2 (facilitado), aeroporto cujo nível de ocupação da capacidade aeroportuária possui potencial de congestionamento que pode ser resolvido por meio de ajustes de programação mutuamente acordados entre o operador do aeroporto e empresas de transporte aéreo ou operadores aéreos, ou ainda por outras circunstâncias previstas nesta Resolução, e que tenha sido declarado como tal pela ANAC; e nível 3 (coordenado), é aquele cujo nível elevado de ocupação da capacidade aeroportuária comprometa qualquer um dos componentes críticos (pista, pátio ou terminal), seja em determinadas horas do dia, ou dias da semana, ou períodos do ano, ou ainda por outras circunstâncias previstas nesta Resolução, e que tenha sido declarado como tal pela ANAC.
Aeroporto coordenado, portanto, figura essencial e pressuposto para própria conceituação de slot, é aquele que está saturado, cuja demanda de tráfego é superior ao máximo que pode oferecer com segurança e atenção às regras operacionais.
Um aeroporto somente passa a receber a designação de coordenado quando a ocupação da capacidade comprometa qualquer um dos componentes críticos (pista, pátio ou terminal); isso pode ocorrer em determinadas horas do dia, ou dias da semana, ou períodos do ano. Além disso, somente assim será nominado, quando declarado pela ANAC (art.3º, III, da Resolução n.º 682/2022).
Importante assinalar caber ao operador do aeroporto a emissão da declaração de capacidade aeroportuária, que por sua vez deverá conter parâmetros de coordenação relativos aos componentes pista, pátio e terminal (artigo 6º, da Resolução n.º 682/2022).
A norma, contudo, traz importante instrumento de agregação e participação dos players envolvidos, na medida em que previu em seu artigo 6º,§3º, que o operador do aeroporto deverá consultar as empresas de transporte aéreo regular de passageiros que ali operam e, no que for possível, levar em consideração as sugestões e acordos realizados, buscando melhorar a eficiência operacional e a capacidade do aeroporto, podendo ainda ser estabelecido um comitê específico para tal fim.
Conforme se adiantou acima, a declaração de aeroporto coordenado, contudo, é incumbência da ANAC, de modo que nos casos em que o nível elevado de ocupação da capacidade aeroportuária de determinado aeroporto comprometa a utilização de um dos componentes aeroportuários críticos (pista, pátio ou terminal), seja em determinadas horas do dia, dias da semana, ou períodos do ano, a ANAC poderá declará-lo aeroporto coordenado (artigos 28 e 29, Resolução n.º 682/2022). Destarte, caberá à Agência julgar a pertinência em declarar um aeroporto coordenado.
Apenas para recapitulação, partimos da ideia de que a liberdade econômica gerou crescimento do setor de transporte aéreo; isso trouxe aumento no número de voos, sem, contudo, um equivalente crescimento da infraestrutura aeroportuária na mesma proporção. Disso constatou-se a escassez da referida infraestrutura em determinados aeroportos estratégicos do País. Essa insuficiência dos componentes aeroportuários fez com que alguns desses aeroportos ficassem saturados, atraindo a necessidade do órgão regulador (coordenador) interferir para organizar sua utilização; daí surgiu a figura dos aeroportos coordenados (nível 3) e dos slots.
Já vimos no item antecedente o que é um aeroporto coordenado. Agora partimos mais especificamente para a definição técnica do que vem a ser slot; ela é extraída atualmente da própria norma reguladora, que assim dispõe: slot aeroportuário (slot): “infraestrutura aeroportuária alocada pelo coordenador à empresa de transporte aéreo ou ao operador aéreo para realizar uma operação aérea de pouso ou decolagem em um aeroporto coordenado em data e horário específicos;”(Resolução 682/2022, art.3º, inciso XXII).
Na definição da IATA, um slot de aeroporto (ou 'slot') é uma permissão dada por um coordenador para uma operação, para usar toda a gama de infraestrutura aeroportuária necessária para chegar ou partir em um aeroporto de Nível 3 em uma data e hora específicas. [12]
Os slots, então, de maneira simplificada, representam a alocação de um horário reservado de pouso e decolagem para determinado operador aéreo em um dado aeroporto coordenado.
Apenas para se ter dimensão da importância do tema, todo ano, mais de 1.5 bilhão de passageiros – o que equivale a 43% de todo tráfego global - partem de mais de 200 aeroportos coordenados por slots. Espera-se que o número de aeroportos coordenados por slots cresça significativamente devido à falta de expansão da infraestrutura aeroportuária apta a lidar com o aumento da demanda.
Do que até aqui se viu, percebe-se que os slots são insumos essenciais para a prestação dos serviços de transporte aéreo. E em vista dessa qualidade, a sua dominância por poucos atores deste mercado gera limitação de concorrência e aumento da concentração, que por seu turno, são vetores que militam, em tudo e ao final, contra os interesses dos usuários deste sistema. Isso devido ao fato de que, sob o aspecto econômico, acabam por gerar preços mais altos pelos serviços prestados em virtude da ausência de competitividade entre os players.
Nesse contexto, portanto, sobreleva a importância do ente regulador, no caso do Brasil, da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), de encontrar um ponto de equilíbrio nas regras, de modo a promover o justo balanço entre a estabilidade/previsibilidade e a concorrência no setor.
No entanto, não se trata de tarefa simples, posto que inexiste uma diretriz universalmente aceita, comprovadamente eficaz e que seja aceita facilmente pelos operadores. O que se tem, é que a IATA, por intermédio da sua publicação das Diretrizes Mundiais de Slots de Aeroportos (WASG) fornece à comunidade global de transporte aéreo um único conjunto de padrões para o gerenciamento de slots de aeroporto em aeroportos coordenados e de operações planejadas em aeroportos facilitados.
O WASG é o padrão da indústria reconhecido por muitas autoridades reguladoras para a gestão e atribuição de capacidade aeroportuária. Em alguns casos, inclusive, o texto foi incorporado aos regulamentos locais e às legislações nacionais, posto que apresentam o que se denominou de melhores práticas do mercado, sob o ponto de vista do desenvolvimento da atividade de transporte aéreo.
Em muitos pontos, portanto, as autoridades reguladoras acabam adotando as principais diretrizes da WASG, divulgada pela IATA, até mesmo como forma de harmonização da regulamentação face à característica ínsita de internacionalidade do transporte aéreo.
Importante registrar, contudo, a advertência trazida por Carlos Cesar Modena, no que se refere a essas diretrizes da IATA, em vista dos interesses que a referida associação representa:
“A IATA tende a valorizar mais a estabilidade e a previsibilidade do sistema – que são favorecidos pelos grandfather rights – do que o uso mais eficiente da infraestrutura ou a necessidade de promover a concorrência e a contestabilidade dos mercados, o que se explica facilmente pelo fato de a associação representar os interesses das principais companhias aéreas, que são as que se beneficiam do atual sistema de alocação com base no precedente histórico”[13]
Conforme se viu anteriormente neste estudo, a falta de infraestrutura de alguns ou todos os componentes aeroportuários críticos, a saber, pistas, pátios ou terminais, leva à necessidade de fixação de regras para uso de tais estruturas, determinando-se quem pode fazer uso, por quanto tempo e quais as diretrizes para a manutenção desse direito. No caso brasileiro, esta regulação se faz por intermédio da Agência Reguladora – ANAC.
O acesso aos slots, na maior parte dos países se faz em conformidade com as diretrizes emitidas pela IATA. No Brasil, o assunto é tratado pela Resolução n.º 682, de 07 de junho de 2022, expedida pela Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que em grande medida também segue as denominadas melhores práticas internacionais, estas condensadas nas diretrizes gerais aglutinadas pela IATA.
A leitura completa da Resolução n.º 682/2022, nos revela que as diretrizes adotadas partem de objetivos concretos a serem alcançados, dentre os quais podemos citar: a) aumentar a capacidade de escolha do consumidor; b) favorecer a concorrência entre aeroportos; c) busca de transparência e equidade na alocação dos slots; d) manutenção do equilíbrio entre as companhias aéreas incumbentes e as entrantes; e) fomentar o melhor aproveitamento das infraestruturas; f) reduzir os congestionamentos e atrasos.
O processo de alocação de slots, no Brasil, se sustenta primordialmente nos denominados direitos de permanência ou precedente histórico (termos estes equivalentes ao que se denominou, em inglês, grandfather rights), bem como nas regras de aproveitamento mínimo (que a doutrina e normatização estrangeira se referem como use it or lose it).
Em primeiro ponto, os direitos de permanência nada mais representam senão o respeito ao histórico de slots, de modo que as companhias incumbentes têm direito de permanecer com seus slots indefinidamente. No entanto, esta regra não é absoluta; ela comporta temperamento e flexibilização justamente para viabilizar que novas empresas (entrantes) tenham condições de acessar o elemento essencial da prestação de serviços aéreos, ou seja, a infraestrutura aeroportuária, sem a qual restam impedidas de desenvolver sua atividade.
O artigo 33, da Resolução n.º 682/2022, é claro ao dispor que a alocação inicial para cada temporada observará em ordem de prioridade: 1) histórico de slots; 2) alterações de histórico de slots; e 3) novas solicitações de slots (banco de slots).
No entanto, uma importante cláusula de escape foi inserida no parágrafo 5º, do artigo 33, da citada Resolução: “§ 5º Caso se verifique condição que implique em barreiras à entrada, com potencial prejuízo à contestabilidade do mercado e à competição efetiva, diferentes critérios para a alocação inicial poderão ser estabelecidos por meio de regulamentação específica.”
A norma, assim, reconhece que a utilização da diretriz de “precedência histórica” pode, eventualmente, criar barreiras à entrada de novos atores, o que provavelmente causará prejuízo à competitividade do mercado.
Se por um lado, então, o processo de alocação guarda congruência com as diretrizes gerais da IATA relativamente ao precedente histórico, assim o faz com objetivo justamente de criar mecanismos de previsibilidade e estabilidade para aqueles operadores aéreos que já atuavam e atuaram em outras temporadas anteriormente num dado aeroporto que passou a ser declarado como coordenado.
Mas como se disse, o respeito à precedência de modo a garantir aos que primeiro chegaram a plena utilização das infraestruturas, traz inevitavelmente um sério risco à contestabilidade do mercado. Isto porque, se não houver adição de outras diretrizes para acompanhamento e monitoração do uso dessas infraestruturas pelas Companhias com direito de precedência histórico, certamente poderão elas abusar do direito de uso, prejudicando em contrapartida a competitividade, que em tudo e ao final, é o objetivo maior do livre mercado.
Nesse contexto, então, surgem as regras conhecidas como use it or loose it (use ou perca), que se traduzem, na prática, pela fixação de critérios de aproveitamento mínimo (índices de regularidade). Nesse sentido, o artigo 41 da Resolução n.º 682/2022, prevê – dente outras - que uma empresa não obterá histórico de slots para uma próxima temporada no caso de operação abaixo do mínimo da meta de regularidade. Do mesmo modo, o mau uso intencional dos slots alocados também acarreta a perda do direito histórico.
O artigo 37 da Resolução aponta que o monitoramento do uso de slots avaliará circunstâncias que envolvam operações aéreas realizadas sem prévia alocação do slot, operações aéreas realizadas em desacordo com as características do slot alocado na base de slots vigentes e as operações aéreas canceladas e slots cancelados.
Importante registrar, por oportuno, que o monitoramento do uso dos slots será feito para cada aeroporto coordenado, assim como o índice de regularidade será igualmente objeto de fixação pela ANAC na declaração de coordenação de determinado aeroporto. Isso traz alguma flexibilidade também nos critérios, de maneira que não seja fixado um mesmo índice de aproveitamento a todos os aeroportos coordenados, pois a realidade de cada qual pode ser diferente e exigir regramentos distintos com objetivo de atingir as metas de aproveitamento, concorrência e previsibilidade.
A título de exemplo, a decisão n.º 533, de 07 de junho de 2022, tomada pela Diretoria Colegiada da ANAC, declarou coordenado o Aeroporto Internacional de São Paulo – Congonhas. No caso, a meta de regularidade para avaliação da eficiência na utilização das séries de slots no aeroporto foi fixada em 80% (oitenta por cento), conforme se afere do artigo 1º, inciso VII.
Importante se apontar, também, que as normas da Agência, em especial as decisões de deliberação quanto à coordenação de aeroporto, fixam a quantidade de slots provenientes do banco de slots a serem distribuídas às empresas entrantes. Esta atuação da agência, a ser feita em cada aeroporto, conduz à possibilidade de tratamento diferenciado conforme a realidade local daquela infraestrutura. Assim, verificando a Agência, que determinado aeroporto está apresentando concentração de mercado, pode fixar que 100% do banco de slots seja distribuído às empresas entrantes no aeroporto. Cuida-se, portanto, de relevante mecanismo de promoção de regulação econômica, mediante estimulação da concorrência, princípio este fundante da atividade econômica privada.
Por tudo quanto se viu neste breve estudo, podemos fixar algumas conclusões.
A primeira, é no sentido de que a abertura econômica, mediante despublicização do serviço de transporte aéreo, remetendo-o ao campo do domínio econômico privado, fez com que houvesse um aumento de empresas explorando a atividade.
A segunda, está a revelar que o incremento do fluxo de tráfego aéreo gera gargalos operacionais, na medida em que as infraestruturas aeroportuárias não acompanham o aumento da demanda do transporte aéreo. Isso pode decorrer tanto de políticas públicas pouco desenvolvidas e atentas ao setor quanto simplesmente pela dificuldade em se promover a extensão dessas infraestruturas em virtude das próprias peculiaridades físicas, geográficas, operacionais, técnicas e burocráticas envolvidas nas expansões de componentes críticos (pista, pátio e terminais).
A terceira, indica que a escassez de infraestrutura é um fato. Ela deve ser reconhecida e trabalhada para buscar maior eficiência, minimizando seus efeitos. Isso leva à necessidade de que um órgão regulador possa coordenar o uso dos aeroportos de modo a atingir referida finalidade (minimizar os efeitos da escassez de infraestrutura).
A quarta, aponta que a atividade de coordenação e distribuição dos direitos de uso de determinados aeroportos congestionados deve ser levada a efeito de modo a buscar um equilíbrio entre a estabilidade/previsibilidade e a concorrência no mercado, de modo que, a despeito da utilização das regras de precedente histórico, estas devem ser obtemperadas por outras diretrizes e princípios, como a regra do “use ou perca”, que impõe metas de regularidade e uso com boa-fé, para manutenção dos slots operados por determinada companhia.
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[1] O Brasil é considerado um país com dimensões continentais, pois apresenta extensão territorial de 8.514.876 Km2. Sua área corresponde a, aproximadamente, 1,6% de toda a superfície do planeta, ocupando 5,6% das terras emersas do globo, 20,8% da área de toda a América e 48% da América do Sul.
[2] Disponível:<https://www.iata.org/contenteassets/bc041f5b6b96476a80db109f220f8904/brazil-o-valor-do-transporte-aereo.pdf.> Acesso em 28 de nov. 2022.
[3] Disponível:<https://www.iata.org/contenteassets/bc041f5b6b96476a80db109f220f8904/brazil-o-valor-do-transporte-aereo.pdf.> Acesso em 28 de nov. 2022.
[4] Panorama 2019: O setor aéreo em dados e análises. ABEAR, 2020. Disponível em: <https://www.abear.com.br/wp-content/uploads/2020/10/Panorama2019.pdf >. Acesso em:30 de nov. de 2022..
[5] Anuário do transporte aéreo. ANAC, 2022. Disponível: <https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/dados-e-estatisticas/mercado-de-transporte-aereo/anuario-do-transporte-aereo>. Acesso em 28 de nov. 2022.
[6] COSTA, João Marcelo Sant´Anna da. Infraestrutura aeroportuária. Rio de Janeiro: Lumen Juris Direito, 2018, p.22.
[7] CAMPOS, Humberto Alves de. Direito e Regulação: Delegação da prestação de serviços de transporte aéreo regular doméstico no Brasil. Curitiba: CRV, 2013, p.42.
[8] CAMPOS, Humberto Alves de. Direito e Regulação: Delegação da prestação de serviços de transporte aéreo regular doméstico no Brasil. Curitiba: CRV, 2013, p.109.
[9] BARAT, Josef. Globalização, logística e transporte aéreo. São Paulo: Editora Senac, 2012, p.80.
[10] OLIVEIRA, Alessandro. Transporte Aéreo: economia e políticas públicas. São Paulo. Pezco Editora, 2009, p.69.
[11] Resolução n.º 682/2022.
[12] Worldwide Airport Slot Guidelines. IATA, 2022. Disponível em: < https://www.iata.org/contentassets/4ede2aabfcc14a55919e468054d714fe/wasg-edition-2-english-version.pdf>
[13] MODENA, Carlos Cesar. Regulação de Slots aeroportuários e concorrência no transporte aéreo no Brasil, in: Regulação e concorrência no setor aéreo no Brasil: alternativas possíveis. SILVA, Leandro Novais e (org). São Paulo: 2014, Editora Singular, p. 154.