Por: Paulo Henrique Stahlberg Natal
23/05/2020
Quando um passageiro compra seu bilhete de transporte aéreo, costuma lhe passar desapercebido o fato de estar se utilizando de um serviço público. Isto ocorre, provavelmente, porque a teor do próprio Código Brasileiro de Aeronáutica, a relação jurídica entre a companhia e o passageiro é contratual e regida pelas respectivas normas previstas no Código de Aeronáutica e principalmente no Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Nada obstante a falta de constatação pelo usuário, é certo que o cenário normativo aponta no sentido de que os serviços de transporte aéreo de passageiros, carga e mala postal, regular ou não, são de natureza pública.
A Constituição Federal, em seu artigo 21, inciso XII, alínea “c", dispõe competir à União, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária.
Mais adiante, o artigo 175, da Constituição dispõe incumbir ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
A matriz constitucional revela, portanto, a atribuição de tais serviços de navegação aérea à União, evidenciando a natureza pública de sua prestação bem assim o respectivo regime jurídico. De outro lado, o texto constitucional permite a descentralização, de modo que possa ser realizado por particulares, mediante as figuras próprias da concessão, da autorização e da permissão.
A descentralização, contudo, não significa a retirada da titularidade dos serviços públicos das mãos do Estado, mas apenas a transferência da execução dos para particulares.
Descendo à legislação infraconstitucional, o Código Brasileiro de Aeronáutica aponta no artigo 175, que os serviços aéreos públicos abrangem os serviços aéreos especializados públicos e os serviços de transporte aéreo público de passageiro, carga ou mala postal, regular ou não regular, doméstico ou internacional. Para os fins deste breve artigo, nos fixaremos apenas nestes últimos, o transporte aéreo regular de passageiros, carga ou mala postal.
Tais dispositivos normativos conjugados são suficientes para notar que a opção adotada foi a de classificar o transporte aéreo regular de passageiros, cargas ou mala postal, como um serviço essencialmente público, já que sua definição se engloba em sentido amplo na expressão navegação aérea.
Sendo, portanto, um serviço público, e não sendo prestado diretamente pelo Poder Público, como é que são desenvolvidos? A resposta a esta pergunta se encontra nos mesmos diplomas acima referidos.
Como se viu, a Constituição cometeu à União a responsabilidade por explorar diretamente a navegação aérea, mas permitiu, também, que o seja por intermédio de concessão, autorização ou permissão.
O Código Brasileiro de Aeronáutica, por sua vez, aponta em seu artigo 180 a opção feita pelo legislador infraconstitucional dentre as três formas indiretas de prestação, ao dispor claramente que a exploração de serviços aéreos públicos dependerá sempre da prévia concessão, quando se tratar de transporte aéreo regular, ou de autorização no caso de transporte aéreo não regular ou de serviços especializados.
Diante desta constatação, cabe indagar se de fato estamos diante da típica figura do instituto da concessão. Assim, a primeira questão a ser enfrentada, nesse sentido, é relativa à marca primordial da concessão: a necessidade de licitação.
O texto do artigo 175, da Constituição Federal é bastante claro a respeito: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”
A licitação, como se sabe, é um procedimento administrativo por intermédio do qual o Poder Público procura selecionar aquela proposta mais vantajosa para o interesse da coletividade; ela é a expressão dos princípios constitucionais da igualdade, da publicidade, da impessoalidade e da eficiência, contidos no artigo 37, caput, da Constituição Federal.
A lei n.º 8.666/1993, que estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos, traz previsão em seu artigo 122, no sentido de que as concessões de linhas aéreas, observará procedimento licitatório específico, a ser estabelecido no Código Brasileiro de Aeronáutica.
Como se observa pela atenta leitura do Código Brasileiro de Aeronáutica, no entanto, não há normas a respeito da licitação para seleção de companhias prestadoras de serviços aéreos de transporte regular de passageiros.
Diante dessa lacuna do ordenamento, portanto, já notamos inexistir a figura da licitação na concessão dos serviços aéreos públicos regulares de transporte de passageiros, carga e mala postal. Com efeito, sequer se cogita a respeito do estabelecimento de uma licitação para escolha de apenas uma empresa que prestará os serviços de transporte. A ideia contraria todo o dinamismo desse mercado específico; a competição entre os players ocorre diretamente na atividade prestada, mediante concorrência entre as companhias, seguindo-se o regime de liberdade tarifária (artigo 49, da Lei n.º 11.182/2005). Quanto mais empresas concorrerem entre si, maiores a chances dos serviços atingirem um espectro maior de destinatários, assim como de haver redução do respectivo preço.
Além de não haver licitação prévia, pode-se apontar que outras características do regime jurídico da concessão não se aplicam no caso dos serviços aéreos públicos.
De eito, não há propriamente um contrato entre o Poder Público e a Companhia Aérea, pois inexiste contraprestação. Por consequência, não se fala em equilíbrio econômico-financeiro, de maneira que não se impõe a obrigação da empresa aérea de voar entre determinados destinos (artigo 48,§1º, Lei n.º 11.182/2005); assim, não está ela compelida a funcionar de modo deficitário.
No panorama das concessões em geral, são regulados os denominados bens reversíveis (art.18, incisos X, XI, 23, X, 35 e 36, da Lei n.º 8.987/1995), como sendo aqueles essenciais à prestação do serviço público de maneira contínua e que passam ao Poder Público ao final da concessão; as aeronaves utilizadas pelas Companhias, a despeito de sua essencialidade para transporte público dos passageiros e carga, não revertem ao Estado ao final da concessão; aliás, na maioria das vezes, essas aeronaves sequer são de propriedade da empresa, porquanto objeto de arrendamento em vista do alto valor que representam.
Como se vê, portanto, a despeito do Código Brasileiro de Aeronáutica se referir à prévia concessão quando se tratar de transporte aéreo regular, a realidade mostra que tal nomenclatura não se adequa às particularidades fáticas e jurídicas desta relação havida entre Poder Público e Companhias Aéreas.
Em conclusão face o panorama traçado, entendemos que seria mais adequado nos referimos à operação das empresas aéreas de transporte regular de passageiros e carga, como sendo fruto de uma autorização emanada do Poder Público, a qual decorre do preenchimento dos requisitos pré-estabelecidos pelo arcabouço normativo, resumindo-se na qualificação técnico-jurídica traçada pelo §1º, do artigo 48 da lei n.º 11.182/2005: observância da capacidade operacional de cada aeroporto e das normas regulamentares de prestação de serviço adequado expedidas pela ANAC.
Nesse sentido, a propósito, parece caminhar o legislador ao notar que a referência à concessão para exploração do transporte aéreo público regular de passageiros, carga e mala postal, não se mostra consentânea com a natureza e o regime de exploração desse nicho específico de serviços de índole pública. Daí por que o Projeto de Lei do Senado Federal, n.º 258/2016, em tramitação e que institui o Novo Código Brasileiro de Aeronáutica, traz previsão nos artigos 232 e 236, de que a exploração de serviços de transporte aéreo público será objeto de autorização vinculada, formalizada mediante contrato de adesão.
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