Acusado ingeriu bebida alcoólica, tumultuou o voo ao incomodar passageiros e comissários de bordo, bem como, em determinado momento, correu em direção à frente do avião e chutou a porta da cabine, escancarando-a. Condenação pelo artigo 261, do Código Penal. TRF da 3ª Região
PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CORRUPÇÃO ATIVA. ART. 333 DO CP. ATENTADO CONTRA SEGURANÇA DE TRANSPORTE AÉREO. ART. 261 DO CP. PRELIMINAR. NULIDADE. NÃO RECONHECIDA. MÉRITO. MATERIALIDADE E AUTORIA. CRIME DE PERIGO CONCRETO (ART. 261 DO CP). EMBRIAGUEZ. ACTIO LIBERA IN CAUSA. CONSTITUCIONALIDADE. PREVISIBILIDADE NECESSÁRIA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DOSIMETRIA DA PENA. EMBRIAGUEZ PREORDENADA. NÃO RECONHECIDA. PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. QUANTUM. RECURSOS DA DEFESA E ACUSAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDOS.
1. Rejeita-se a alegação de nulidade do julgamento, pois, se os fundamentos adotados bastam para motivar a decisão, o julgador não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos da parte. Ademais, os pontos relacionados pelo acusado em seu recurso como "omissões" do Juízo a quo foram, na verdade, plenamente analisados no bojo da r. sentença.
2. A materialidade de ambos os delitos se viu devidamente demonstrada. Além do auto de prisão em flagrante (fl. 02/03), auto de apresentação e apreensão (fls. 21/22), e termo de desembarque compulsório de passageiro (fls. 27), há também a vultosa prova oral coligida no curso da investigação e instrução criminal, que servem também à comprovação da autoria.
3. Não resta dúvida que o acusado ingeriu bebida alcoólica, tumultuou o voo ao incomodar passageiros e comissários de bordo, bem como, em determinado momento, correu em direção à frente do avião e chutou a porta da cabine, escancarando-a. O perigo concreto daí advindo foi demonstrado. Em seu testemunho, o piloto deixou claro que na fase do voo em que se encontravam ("cruzeiro"), de alta velocidade, qualquer mudança repentina nos comandos poderia ser fatal, uma vez que a estrutura da aeronave não suportaria alterações bruscas de direção, por exemplo. E mais, o piloto afirmou que ele e o copiloto assustaram-se demasiadamente com a invasão da cabine, tanto pela maneira repentina e brusca como foi feita, como em razão do barulho decorrente do chute do acusado. O argumento da Defesa de que o acusado não chegou a adentrar a cabine é, portanto, irrelevante. O perigo concreto existiu independente de ter o agente pisado dentro da cabine. Tivesse o piloto ou copiloto esbarrado nos controles da aeronave em razão do susto criado pela conduta do acusado, era provável a catástrofe.
4. A prova dos autos dá conta de que o acusado, ao praticar as condutas tipificadas em lei (arts. 261, caput, e 333, ambos do CP), encontrava-se excessivamente embriagado. Testemunhas referem-se ao seu estado como "bastante alterado", "alucinado" e "transtornado". Saulo, que serviu de intérprete quando da oitiva do acusado em sede policial, pouco após os fatos, afirmou não acreditar que o acusado estivesse entendendo o que estava acontecendo. Ainda assim, antes que se possa concluir pela exclusão da culpabilidade, é necessário ponderar que o acusado embriagou-se voluntariamente, adquirindo bebida alcoólica e consumindo-a pouco antes de embarcar, e também durante o voo internacional.
5. Se houve voluntariedade na ingestão da bebida, não é possível falar em embriaguez proveniente de caso fortuito ou força maior. Isto traz à tona a teoria da actio libera in causa, já mencionada nos autos. Segundo referida teoria, vigente no país e aplicada ordinariamente pela jurisprudência, ainda que no momento do fato o acusado não fosse plenamente capaz de entender o ilícito de sua conduta, ou determinar-se de acordo com tal entendimento, "leva-se em consideração que, no momento de se embriagar, o agente pode ter agido dolosa ou culposamente, projetando-se esse elemento subjetivo para o instante da conduta criminosa". (Nucci - Código Penal Comentado - 14ª ed. 2014).
6. Se a embriaguez foi preordenada, nenhum empecilho há na aplicação da teoria da actio libera in causa, pois não pode o bem jurídico restar desguarnecido em decorrência da estratégia previamente traçada pelo agente, o qual, intencionalmente, embriaga-se para escapar da lei penal. Contudo, se no momento da embriaguez o agente não previa a possibilidade de vir a infringir norma penal, responsabilizá-lo ainda assim pelo delito superveniente é fazer ressuscitar no ordenamento a responsabilidade objetiva, o que não pode ser aceito.
7. Não se pode, em nome do princípio da culpabilidade, deixar desprotegidos bens jurídicos da maior importância à sociedade, permitindo que todo e qualquer embriagado, seja lá por que motivo tenha se embriagado e em quais condições o fez, seja considerado inimputável por crimes cometidos após estar intoxicado. Da mesma maneira, não é possível aplicar a teoria da actio libera in causa cegamente, dogma este que em nada contribuiria para a justiça no caso concreto, punindo indivíduos que agiram sem qualquer dolo ou culpa. Entende-se necessário, pois, inserir na interpretação do no art. 28, II, do CP, o elemento da previsibilidade. Com efeito, assim o fazendo, ainda que o agente não tenha se embriagado de forma preordenada, responderá pelo delito que porventura vier a praticar se ao tempo da ingestão do álcool lhe era possível prever a prática delitiva.
8. A previsibilidade, portanto, é que dá sustentação constitucional ao dispositivo supracitado, pois sem aquela este avança sobre o terreno abjeto da responsabilidade objetiva, transgredindo a dignidade da pessoa humana, cerne da nossa Carta Maior. Se o agente embriagou-se imbuído de vontade e consciência de cometer delito posterior, responderá pelo fato superveniente à intoxicação, transportando-se o elemento subjetivo de um momento para o outro. Ainda, se quando ingeriu bebida alcoólica não tinha intenção de cometer o crime superveniente, mas lhe era perfeitamente previsível a ocorrência posterior do delito, não há como considerá-lo inimputável, sendo então o caso de se averiguar se o agente assumiu o risco da prática delitiva (dolo eventual) ou repeliu a hipótese de superveniência do resultado (culpa consciente). Se, por fim, não tinha dolo ou culpa quando se embriagou completamente, sendo-lhe na ocasião imprevisível (ou desarrozoado exigir que previsse) o fato delitivo superveniente, não poderá responder pelo que fez em momento de plena inimputabilidade.
9. Posta a questão nestes termos, tem-se que o acusado é culpável pelo delito de "atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo", mas não pelo delito de "corrupção ativa".
10. O indivíduo que pouco antes de embarcar em um voo internacional adquire e passa a ingerir grande quantidade de bebida de elevado teor alcoólico, continuando a fazê-lo durante o voo, tem total condição de prever o tumulto, a desordem e a consequente exposição a perigo do veículo aéreo causados por conduta. Se, ainda que previsível tais fatos, o agente segue adiante e voluntariamente se coloca em estado de embriaguez, sendo provável a celeuma causada por tal circunstância em um voo, assumiu o risco de consumar o delito.
11. Já no que tange ao delito da corrupção ativa, não há como vinculá-lo subjetivamente ao acusado, visto que no momento em que se embriagava, era-lhe imprevisível a prática de tal ato. Com efeito, não é razoável exigir do indivíduo que ingere bebida alcoólica antes de embarcar em um voo que preveja a hipótese de praticar o crime de corrupção ativa horas depois. Salienta-se, é claro, que o agente encontrava-se completamente embriagado quando ofereceu o dinheiro que trazia consigo ao policial que o prendeu, e isso em frente a diversas testemunhas que permaneciam ao lado. Se, apesar de alcoolizado, tivesse consciência mínima da gravidade de sua conduta, e ainda assim a praticasse, responderia por seus atos.
12. Quanto à dosimetria da pena, não há prova nos autos de que o acusado tenha se embriagado de forma preordenada, ou seja, imbuído da intenção de praticar o crime, como que tomando coragem para perpetrá-lo. Na realidade, o acusado assumiu o risco de expor a perigo a aeronave, aquiescendo com a possibilidade de efetivá-lo, o que é diferente do propósito de cometer a infração penal, quando só então incidiria a agravante pleiteada pelo órgão ministerial (art. 61, inc. II, alínea 'l' do CP).
13. A acolhida do pedido ministerial para acréscimo do valor da prestação pecuniária tem razão de ser na necessidade de prevenção e reprovação do delito, bem como em consideração à situação econômica do condenado. Com efeito, o acusado realizava voo internacional (de alto custo, portanto), trazia consigo 1.220,00 euros em espécie, cursava em seu país ensino superior ("Ciências Econômicas"), e, segundo informou seu pai, aufere atualmente cerca de 500 dólares por mês proveniente de um trabalho de meio período. Ainda que seu pai, na figura de informante, tenha dito que a viagem havia sido custeada pela família, o acusado não fez qualquer prova disto. Assim é que não se vislumbra situação financeira desfavorável que impeça o pagamento de prestação pecuniária em montante superior ao previamente estipulado. Pelo contrário, as circunstâncias denotam situação econômica privilegiada.
14. Recursos parcialmente providos.
(TRF 3ª Região, SEGUNDA TURMA, Ap. - APELAÇÃO CRIMINAL - 54301 - 0005393-71.2011.4.03.6119, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL COTRIM GUIMARÃES, julgado em 07/07/2015, e-DJF3 Judicial 1 DATA:16/07/2015 ).
Penal e processo penal. Apelação criminal. Atentado contra a segurança de transporte aéreo, art. 261 DO CP.Crime de perigo concreto. Ausência de periclitação da incolumidade pública. Recurso defensivo provido. Absolvição decretada.
1. Defeito em gravação de áudio de testemunho que, embora dificulte a compreensão do depoimento, não se caracteriza insuperável, sendo plenamente possível apreender o conteúdo dos dizeres da testemunha, sem prejuízos à ampla defesa.2. Argumento de nulidade referente à inversão da ordem de oitiva das testemunhas não acolhido, tendo em vista a ressalva contida no art. 400 do CPP quanto ao preceito do art. 222 do estatuto processual penal.3. Classifica-se a figura típica do art. 261 do Código Penal como crime de perigo concreto e, assim, faz-se necessária para a sua consumação a existência de efetivo risco de dano contra a incolumidade pública, incumbindo o ônus da prova deste risco à acusação.4. Caso em que as provas coligidas - teor de depoimentos testemunhais - demonstram que, embora possam ser consideradas desequilibradas e moralmente reprimíveis, hábeis a forçar alteração do regular procedimento de decolagem da aeronave, as ações do acusado não culminaram ao ponto de pôr em risco a segurança dos passageiros e tripulantes ou mesmo do transporte aéreo e, portanto, não consubstanciam o perigo concreto necessário para a caracterização do crime de atentado contra a segurança de transporte aéreo.5. Recurso provido, para absolver o acusado com fulcro no art. 386, III, do CPP. (TRF 3ª Região, SEGUNDA TURMA, Ap. - APELAÇÃO CRIMINAL - 46492 - 0009678-23.2008.4.03.6181, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL COTRIM GUIMARÃES, julgado em 28/04/2015, e-DJF3 Judicial 1 DATA:07/05/2015 ).
Íntegra do Acórdão - http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/4282257
Apelação Criminal. Crime do artigo 261, caput, do Código Penal. Exposição a perigo de aeronave. Materialidade e autoria demonstradas. Direito de manifestação de pensamento e estado de necessidade: não configurados. Descontrole emocional no momento do ato ilícito: não verificado. Dosimetria da pena.
1. Trata-se de apelação da defesa pretendendo a reforma da sentença que condenou Clodoveu Dantas Lacerda pela prática do delito descrito no artigo 261, caput, do Código Penal a quatro anos de reclusão, em regime inicial aberto, a qual foi substituída por prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e 10 (dez) dias-multa, no valor unitário mínimo.
2. Clodoveu utilizou-se de gasolina - acondicionada em garrafa pet de 2 litros - e de isqueiros, a bordo de vôo da empresa Gol, para intimidar e coagir o piloto a desviar a rota Cuiabá/MT a Campo Grande/MS para Brasília, fazendo sobrevôo sobre o Congresso Nacional, como forma de protesto, por estar desempregado, não conseguir colocação profissional, tampouco aposentar-se e/ou levantar parcela do PIS.
3. Os laudos dos autos demonstram a aptidão dos isqueiros utilizados pelo apelante para produzir faíscas e/ou chamas e a aptidão da substância líquida, com odor característico do combustível automotivo gasolina, de inflamar.
4. A autoria é demonstrada pela prova oral produzida em juízo, inclusive pela admissão do apelante do uso dos isqueiros e gasolina durante o vôo, causando grande confusão a bordo e culminando com sua detenção por passageiros e tripulantes, até o desembarque em Campo Grande/MS.
5. O comportamento do apelante transborda do direito à manifestação de pensamento, constitucionalmente assegurado (artigo 5º, IV, da Constituição Federal de 1988).
6. O tempo decorrido entre a compra da passagem (após ter sacado o dinheiro no banco - provavelmente no período da tarde de 11.11.2002) e o horário do vôo (02:45H do dia 12.11.2002) foi considerável, não havendo que se falar em ação abrupta do apelante, tomado por forte emoção ou descontrole emocional repentino.
7. Estado de necessidade: o apelante não comprovou a premência em salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem poderia evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se, conforme preceitua o artigo 24 do Código Penal.
8. Dosimetria da pena: Estado emocional do apelante no momento do crime: houve tempo considerável entre o planejamento do ato ilícito - compra da passagem aérea e da gasolina - e a execução. O ato ilícito cautelosamente pensado não pode ser tido como causa para a diminuição da pena, revelando-se inviável considerar-se o apelante tomado por súbito estado de ânimo, que o tenha levado a cometer o delito.
9. Montante da pena bem dosado, com base nas circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal.
10. Apelação desprovida.