POPULISMO, POLÍTICAS PÚBLICAS E O PERECIMENTO DA AVIAÇÃO GERAL
Paulo Henrique Stahlberg Natal
Data: 25/03/2023
Um país de largas dimensões territoriais, cuja população já ultrapassa a casa dos 200 milhões de habitantes, por certo clama pela utilização do modal aéreo como meio de integração nacional e desenvolvimento econômico, sobretudo diante da carência de sistemas ferroviário e rodoviário minimamente desenvolvidos e estruturados, como no caso do Brasil. A necessária mobilidade mediante intercâmbio cultural ou profissional e o imperativo de integração da cadeia logística produtiva, revelam em conjunto a importância do desenvolvimento da aviação civil em todos os seus espectros.
Lado outro, não se duvida da relevância socioeconômica do setor em níveis nacional, estadual e municipal, apresentando o seu impacto em termos de produção, emprego, renda e tributo em cada uma das vinte e sete unidades da federação.
Quando se fala em aviação civil, contudo, logo vem à mente complexos aeroportos densamente movimentados e grandes aeronaves bailando numa simbiose perfeita, permitindo que milhões de pessoas e milhares de toneladas de produtos cheguem em segurança em seus respectivos destinos todos os dias.
Porém, é preciso lembrar que nem só da grande aviação regular vive uma nação; antes, o despontar de uma atividade aérea regular de transporte de passageiros e cargas pressupõe uma antecedente etapa, talvez não tão glamurosa aos olhos dos leigos e de algumas autoridades públicas e políticas. Estamos nos referindo àquela aviação de menor porte, conhecida por aviação geral.
Operação de aviação geral significa uma operação de aeronave não envolvendo transporte aéreo público regular (comercial). Nesta categoria, estão incluídas a aviação agrícola, a de instrução, aeromédica, a experimental, a desportiva, a executiva, o táxi aéreo, aerofotogrametria, aeropublicidade, transporte de cargas externas, entre muitos outros exemplos.
Não é demais relembrar que a despeito da continentalidade territorial brasileira, com seus cerca de 5,5 mil municípios, apenas cerca 130 deles são cobertos por rotas de aviação comercial regular. Toda complementariedade de atividades aéreas a alcançar demais destinos não atendidos pelas companhias regulares foi outorgada à aviação geral.
Por essa breve introdução logo se vê a relevante função exercida pela aviação geral para o funcionamento de um sistema aeronáutico nacional. Mas a despeito de toda sua importância, o movimento que parece prevalecer no País, nos últimos anos, é o de paulatino desmonte das estruturas fundantes da aviação geral, a despeito de algumas louváveis iniciativas, ações e programas desenvolvidos no âmbito regulatório. Esse perecimento ocorre, seja mediante criação/manutenção de regras administrativas limitadoras do crescimento e desenvolvimento do setor, seja por intermédio da falta de subsídios que incentivem o setor, seja ainda, pelo desmantelamento das estruturas aeroportuárias utilizadas por aquele ramo da aviação.
Não são poucos nem raros os casos de investidas políticas contra a aviação geral, levadas a efeito por interesses muitas vezes desconhecidos, não declarados ou pouco transparentes. Diversos são os capítulos históricos recentes que demonstram a desatenção do Poder Público para com uma séria política pública de desenvolvimento da aviação civil, em especial da geral.
O mais recente caso a envolver esta discussão diz respeito ao aeroporto Carlos Prates, em Minas Gerais. Fundado em 1944, o local abriga cinco escolas de aviação, oficinas mecânicas aeronáuticas, hangares e dezenas, quiçá praticamente mais de uma centena de aeronaves. Segundo informações publicadas na mídia, são mais de quinhentos empregos diretos, além de outros quinhentos alunos em formação para piloto. Não bastasse, ao que consta o aeroporto serve de base para operações de manutenção e treinamento, hoje realizadas pelas aeronaves do governo do Estado, Polícias Militar e Civil e Bombeiros.
Em que pese toda a importância que carrega, o referido aeroporto está prestes a ser fechado pelo Poder Público. A motivação primordial declarada pelas Autoridades Públicas envolvidas no episódio repousa basicamente em dois principais argumentos: o risco à segurança aos moradores circunvizinhos e necessidade de utilização da área para construção de moradias sociais. Afora isso, no âmbito governamental, ainda se aventou que o aeroporto registra prejuízo e que não haveria interessados em assumir a concessão da estrutura.
É verdade que a aviação traz consigo um imanente e intrínseco risco. Nem por isso, entretanto, deve ser subutilizada, restrita ou extinta. Pelo contrário, é justamente a partir de infelizes fatalidades que ela se torna cada dia mais segura (filosofia SIPAER). Há um risco social a ser suportado em troca do benefício por outro lado auferido; como tudo na vida, aliás. Se voar pode ser arriscado (o que não me parece verdade nos idos da segunda década do século XXI, se comparado com 100 anos passados), não ter acesso a uma infraestrutura aeronáutica parece ser ainda pior. Basta observar o grau de evolução da aviação civil entre os países desenvolvidos e compará-los com os países em desenvolvimento. A diferença será brutal.
Dizer que um aeroporto é pernicioso à comunidade pelo risco de acidentes aeronáuticos é fundar-se em falsa premissa para atingir objetivos outros não declarados ou pouco transparentes. Em termos comparativos, seria o mesmo que fechar uma rodovia de acesso ao litoral porque no trecho de serra acontecem acidentes. É incogitável. Medidas devem ser tomadas para que os acidentes não mais ocorram, seja por meio de medidas educacionais, fiscalização ou própria melhoria da infraestrutura. Nada obstante tal constatação, fato é que este pensamento é real e reinante no País atualmente quando o assunto é aviação e aeroportos.
Talvez a sociedade da informação, o rápido acesso a notícias, a facilidade de espraiar-se falsas informações, a imposição do medo irracional, além de outras nuances, acabam por levar à população em geral, um sentimento de que a aviação de pequeno porte é perigosa e perniciosa ao meio social. Não poderia haver engano maior e – aí sim - mais desastroso ao sistema aeronáutico nacional.
Um acidente aeronáutico envolvendo operações de pouso e decolagem que acabam por atingir imóveis nas cercanias dos aeroportos é uma realidade com a qual a sociedade optou por conviver com o desenvolvimento da aviação e a colheita dos benefícios por ela trazidos. São raros os casos desses acidentes e incidentes; e percentualmente falando, representam uma minúscula casa decimal após alguns vários zeros depois da vírgula, quando comparados com o número de pousos e decolagens.
Assim, buscar legitimar o fechamento de uma razoável estrutura aeroportuária ao argumento de que representa perigo social, não parece prevalecer, sobretudo no Brasil, País reconhecido por boas práticas de segurança no setor aéreo, cujo órgão investido da investigação e prevenção desses acidentes (CENIPA) trabalha de forma devotada e com reconhecimento internacional pela competência investigativa e qualidade dos serviços prestados à nação.
Se existem acidentes, deve-se buscar os fatores contribuintes para suas ocorrências, de maneira que se possam reduzi-los no futuro. A propósito, ações sérias e comprometidas de todos os atores envolvidos na regulação – regulados e reguladores - são fundamentais para tanto; daí, inclusive, a agenda de regulação responsiva implantada pela ANAC. Assim, seria possível argumentar-se que o fechamento do aeroporto constituiria medida razoável se dentre um relevante universo de acidentes/incidentes, se constatasse que a estrutura aeroportuária foi fator contribuinte determinante para as ocorrências. Do contrário, a premissa revela apenas um argumento simples e populista com objetivo de utilização de área nobre onde instalado o aeroporto para propósitos imobiliários, sejam estes públicos, privados ou meramente sociais.
Não se olvide, ainda, o registro histórico apontando que os aeroportos foram construídos e instalados – na maioria dos casos - inicialmente em localidades distantes das zonas mais densamente habitadas das cidades. O que houve, a seguir, a bem da verdade, foi a desordenada ocupação do solo, deliberada ou omitida, mas sempre chancelada pelos governos das três esferas, de maneira a permitir a instalação de uma coletividade de bairros, com milhares, as vezes milhões de habitantes, nas cercanias dessas estruturas aeroportuárias. Ao depois desse comportamento que parece ser cultural nos mais variados municípios brasileiros, culpar a aviação pelos raros desastres ocorridos nos imóveis que circundam as pistas é fácil e populista, pois não desce ao cerne da discussão de questões urbanísticas e de exploração aeronáutica.
A respeito da alegada suposta falta de interesse da iniciativa privada em assumir a concessão do aeroporto, faltam subsídios a este articulista para manifestar-se a respeito. No entanto, as diversas rodadas de concessão de aeroportos pelo Brasil, tem mostrado aprimoramento e êxito no repasse da exploração da atividade para o domínio privado, sobretudo diante do aperfeiçoamento das estruturas, regimes e contratos de exploração desenvolvidos pela ANAC com suporte da Advocacia Geral da União (AGU). Bons projetos, boas ideias para manutenção e integração do aeroporto naquela localidade não podem ser descartadas, mas demandariam maior aprofundamento do debate.
Não se olvide que o Brasil aprovou, por intermédio do Decreto Federal n.º 6.780/2009, a Política Nacional de Aviação Civil (PNAC), cujo principal propósito é assegurar à sociedade brasileira o desenvolvimento de sistema de aviação civil amplo, seguro, eficiente, econômico, moderno, concorrencial, compatível com a sustentabilidade ambiental, integrado às demais modalidades de transporte e alicerçado na capacidade produtiva e de prestação de serviços nos âmbitos nacional, sul-americano e mundial.
A Política Nacional de Aviação Civil, visa pois, caracterizar a importância do desenvolvimento e aumento da disponibilidade de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária civis, com vistas a aumentar a oferta de serviços de transporte aéreo. Tal condição permitirá ampliação da disponibilidade de serviços, possibilitando, dessa maneira, aumento do bem-estar da sociedade brasileira, bem como maior integração do País no contexto internacional, em face da excepcional importância da aviação para as atividades sociais e econômicas modernas.
Questiona-se, no entanto, como tais objetivos serão alcançados à vista dos diversos e reiterados desmanches que atingem a aviação geral, e aqui, em específico, na infraestrutura aeroportuária por ela utilizada.
A título de exemplo do forte impacto a ser sentido com o fechamento de aeroclubes, aeródromos e aeroportos de menor porte, podemos citar as escolas de aviação, cujo propósito é a formação de mão-de-obra qualificada para esse específico mercado de trabalho.
O acesso à carreira de piloto já é marcado por grandes dificuldades, sendo a questão financeira uma das principais, devido ao elevado custo de formação desse profissional. Estudos e prognósticos mostram que podem faltar profissionais da aviação civil qualificados num futuro não muito distante. Onde serão formados tais pilotos? Como serão treinados e aperfeiçoados, se as estruturas onde eram instaladas as escolas de aviação vão cedendo espaço à implantação de outras políticas públicas? Haverá necessidade de valer-se de profissionais estrangeiros no futuro? Qual o impacto de uma situação dessas nos custos e na operação cotidiana da aviação? Todas estas são questões importantíssimas que precisam ser levantadas e discutidas com seriedade, sem populismo, sem ideologia política e com ares de desenvolvimento e progresso.
Nem se queira, aliás, argumentar que referidos centros de treinamento podem simplesmente deixar as respectivas localidades e se instalarem em outros aeroportos maiores. A atividade é simplesmente incompatível com a ordenação do tráfego aéreo dos grandes aeroportos. Não há mais condições de imaginar-se voos de instrução diuturnamente ocorrendo em Congonhas/Guarulhos e Confins/Pampulha, por exemplo. São operações completamente distintas cuja compatibilização já se tornou inviável. Por isso a importância, apenas a título de exemplo, de aeroportos menores como Campo de Marte e Carlos Prates, para a operação destas atividades de aviação geral.
O caso do aeroporto Carlos Prates marca mais um doloroso capítulo na derrocada deste importantíssimo ramo de atividades: a aviação geral. Um País que almeja desenvolvimento econômico e social não pode suprimir sua já parca infraestrutura aeroportuária e aeronáutica; não se pode almejar menos aeroportos; a busca constante deve ser pelo progresso, como diz o próprio lema inscrito no pavilhão nacional.
Em tudo e ao final, com o fechamento de uma grande infraestrutura aeroportuária, quem perde é sempre a sociedade. Dezenas de milhões de reais gastos na construção da estrutura se esvaem; empregos diretos e indiretos, tributos, atividade econômica, turismo, transporte, logística, aerodesporto, todos são afetados negativamente.
Políticas públicas são, em suma, a efetivação prática dos direitos inscritos no arcabouço normativo. Por mais nobres que sejam cada qual delas, precisam coexistir de forma harmoniosa dentro de um grande sistema social, de modo que uma não elimine a outra, assim permitindo o desenvolvimento do País nos mais diversificados ramos da atividade humana. Por isso a busca de soluções simples para problemas complexos – prática que parece ter se tornado corriqueira no Brasil – muitas vezes fundada em premissas equivocadas, em nada contribui para o desenvolvimento nacional. Com o fechamento de aeroportos e aeródromos, perde a aviação, perde a sociedade, perde o futuro do Brasil.
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