Paulo Henrique Stahlberg Natal
09/06/2020
Recentemente foram divulgadas notícias a respeito de uma decisão tomada pela ICAO (International Civil Aviation Organization), no sentido de que seria vedado o transporte de bagagens de mão nos compartimentos próprios a bordo das aeronaves (overhead locker / compartimento superior).
A esse respeito, de início, convém situar a postura da ICAO, ou seja, em que contexto está inserida.
No âmbito daquela Agência Internacional, devido à grave crise do setor aéreo decorrente da Pandemia de Covid-19, foi constituído um grupo de trabalho do Conselho da ICAO, consistente na Força-Tarefa de Recuperação de Aviação (CART).
Essa Força-Tarefa tem como objetivo fornecer orientações práticas e alinhadas a governos e operadores da indústria, a fim de reiniciar o setor de transporte aéreo internacional e recuperar-se dos impactos do COVID-19 em uma base global coordenada. Ela é composta por representantes dos Estados e organizações internacionais, regionais e da indústria, e apoiada pelo Secretariado da ICAO; foi incumbida de identificar e recomendar prioridades e políticas estratégicas para apoiar os Estados e a indústria com base em três pilares:1) facilitar o reinício das operações da aviação de maneira segura, sustentável e ordenada, o mais rápido possível; 2) a construção de um sistema de aviação mais resiliente a longo prazo; 3) lidar com os desafios imediatos enfrentados pelos Estados e pela indústria da aviação civil devido à pandemia do COVID-19.
Pois bem, para alcançar este objetivo, o trabalho da CART redundou além do Relatório de Recuperação, também na produção de orientações de retomada para a aviação internacional, de modo a salvaguardar a saúde, a proteção e a segurança do público em viagens aéreas.
As orientações da CART incluem uma seção sobre medidas de mitigação de riscos à saúde pública, além de quatro módulos operacionais relacionados a: a) aeroportos; b) aeronaves; c) tripulação; d) carga.
O módulo relativo a “Aeronave” contém orientações específicas sobre os processos de embarque, atribuição de assentos, bagagem, interação a bordo, sistemas de controle ambiental, serviço de alimentos e bebidas, acesso a lavatórios, proteção da tripulação, gerenciamento de passageiros ou membros da tripulação e limpeza e desinfecção de cabine e compartimento de carga.
Dentro, ainda, do “Módulo de Aeronave - Passageiro e Tripulação em Geral”, com objetivo de proporcionar um ambiente operacional sanitário seguro para passageiros e tripulantes, foi firmada a seguinte consideração: “Limit interaction on board. Encourage passengers to travel as lightly as possible with check-in of all luggage except small hand luggage that fits under the seat. Remove newspapers and magazines. The size and quantity of duty-free sales may also be temporarily limited”.
Conforme se colhe, portanto, há recomendação no sentido de limitar a interação a bordo, de modo a evitar aglomeração e contato entre os passageiros. Nesse sentido, a diretriz é para que os passageiros sejam incentivados a viajar com o mínimo de bagagens de mão (de bordo/cabine) possível, de modo a despacharem toda bagagem que tragam consigo, exceto uma pequena de mão que se encaixe sob o assento.
Mas isto se trata de uma norma a ser obrigatoriamente seguida? As Companhias passarão imediatamente a proibir o embarque de malas de mão?
Entendemos que não.
Em primeiro lugar, convém relembrar que a Convenção de Chicago é um tratado internacional juridicamente vinculante aos Estados que o ratificam. Seu texto traz provisões voltadas à harmonização regulatória das operações aéreas entre os Estados aderentes.
As normas todas de padronização, contudo, não estão contidas no texto da Convenção de Chicago em si, mas em Anexos detalhados (atualmente são 19). Estes Anexos estabelecem o que se denomina padrões e práticas recomendadas (Standards and Recommended Practices – SARPS), contendo aspectos técnicos e operacionais ligados à aviação.
Nesse cenário normativo da ICAO, o que se observa é que existem duas manifestações distintas: as normas (padrões) e as práticas recomendadas (art.37, da Convenção de Chicago).
As normas (padrões) são de observância necessária para a regularidade e eficiência da navegação aérea e para a segurança operacional. Os Estados contratantes devem conformar-se a elas; e não fazendo, são obrigados a notificarem as diferenças à Organização (artigo 38, da Convenção de Chicago). São, por esse motivo, auditados pela ICAO.
De outro lado, as chamadas práticas recomendadas, como o próprio nome sugere, são especificações cuja aplicação seja apenas desejável, não obrigatória; por essa razão sua validação não está incluída em programa de auditoria da ICAO.
No caso concreto discutido neste artigo, entendemos que a ICAO publicou recomendações/orientações para retomada para a aviação internacional. Portanto, devem ser lidas enquanto práticas recomendadas, desejáveis. A própria orientação da ICAO fala em encorajar os passageiros a viajarem com o menor peso possível de bagagens de mão, com o check-in de toda a bagagem.
Isto não significa dizer que haja uma imposição imediata para que as companhias aéreas brasileiras passem a impedir a bagagem de mão a bordo da aeronave, limitando-as apenas a uma pequena bolsa/mochila que caiba embaixo do assento do passageiro. Para que seja tal hipótese aventada, entendemos haver necessidade de regulamentação normativa específica nesse sentido por parte da Autoridade de Aviação Civil Brasileira, no caso a ANAC, a despeito da redação do artigo 14, caput, da Resolução n.º 400/2016, atualmente em vigor (com retificações pontuais promovidas pelas Resoluções n.º 556 e 557/2020), e que dispõe sobre as Condições Gerais de Transporte Aéreo.
O artigo 14 da referida Resolução traz a seguinte previsão:
“Art. 14. O transportador deverá permitir uma franquia mínima de 10 (dez) quilos de bagagem de mão por passageiro de acordo com as dimensões e a quantidade de peças definidas no contrato de transporte.
§ 1º Considera-se bagagem de mão aquela transportada na cabine, sob a responsabilidade do passageiro.
§ 2º O transportador poderá restringir o peso e o conteúdo da bagagem de mão por motivo de segurança ou de capacidade da aeronave.”
Como se observa, não existe nesse dispositivo previsão específica de que a bagagem de mão franqueada seja transportada no compartimento de cabine acima dos assentos. Daí porque há quem advogue interpretação no sentido de ser permitida a restrição do tamanho da bagagem por cláusula contratual, de modo que a franquia nesse caso compreenda somente aquelas que sejam passíveis de acomodação debaixo dos assentos.
No entanto, a orientação da ICAO para que os passageiros sejam incentivados a viajar com o mínimo de bagagens de mão (de bordo/cabine) possível, decorre exclusivamente do período da Pandemia e dos riscos à saúde pública, devendo tais medidas serem descontinuadas tão logo alteradas as circunstâncias fáticas. Significa dizer que se trata de excepcionalidade, relativa a um período de tempo limitado, e com finalidade exclusiva de evitar contato e aglomeração de passageiros.
Por fim, ainda que se cogite da introdução de tal prática em ambiente nacional, entendemos também que não haveria suporte legal para cobrar do passageiro o despacho da bagagem de mão. Isto porque, justamente o artigo 14 da Resolução n.º 400/2016, estabelece que o transportador deverá permitir uma franquia mínima de 10 (dez) quilos por passageiro. Logo, estando garantida esta condição mínima no contrato de transporte, a cobrança para despacho apenas em virtude de uma diretriz temporária de resguardo da saúde dos passageiros e tripulantes figura evidentemente afrontosa aos princípios e normas de proteção ao consumidor.
Autor: Paulo Henrique Stahlberg Natal
Data: 09/06/2020.
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