Por Paulo Henrique Stahlberg Natal.
17/04/2020.O ano era 1927. O dia 07 de maio entraria para história da aviação brasileira e mundial. Naquela data, nascia uma empresa que viria a se tornar um dos mais importantes ícones da aviação Brasileira, reconhecida no mercado interno e internacional como paradigma de conforto, confiabilidade, elegância, qualidade dos serviços e segurança: surgia a Varig (Viação Aérea Rio-Grandense).
Gianfranco Beting, autor do livro “Varig, a eterna pioneira” e reconhecido especialista em aviação, relata que “A importância da Varig transcende a indústria de aviação. Ela era uma embaixadora do Brasil”.
Apesar dessas constatações, sacudida por graves crises financeiras que se iniciaram já na década de 80, e depois de cerca de oitenta (80) anos de operação, a icônica marca se via esvair no que viria a ser um longo processo de recuperação judicial, seguido de convolação em falência, e que tramita até os dias atuais.
No entanto, devido à sua intrincada relação com o desenvolvimento da própria aviação civil brasileira, a extinta companhia continua a ser ponto de referência na comunidade aeronáutica. Não por outra razão, o juízo da 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro determinou a manutenção do Museu Varig na cidade de Porto Alegre – RS. Com isso, buscou-se a preservação do Grupo Varig, mantendo-se uma aeronave DC-3, prefixo PP-ANU, que integra o conjunto de bens do referido Museu, gerido atualmente por uma empresa privada, escolhida em processo de licitação sob a supervisão do juízo da falência e com fiscalização do Ministério Público.
Nada disso, entretanto, foi suficiente para que outra parte da memória da aviação brasileira e da referida Companhia fosse preservada. No dia 31 de janeiro de 2020, nas cercanias do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro (Galeão), um avião Douglas, modelo DC-3, prefixo PP-VBF, foi destruído e recortado. O avião havia sido fabricado em 1942, e pertenceu às Forças Armadas Americanas, tendo servido na Segunda Guerra Mundial; aportou na Varig na década de 1950. As imagens explícitas do vilipêndio à história foram capturadas em fotos e vídeos. E rapidamente se disseminaram nas redes sociais, causando perplexidade no meio aeronáutico e culminando na divulgação do episódio por diversos meios de comunicação.
E as perguntas que logo surgiram: como isso foi acontecer? Como se permitiu a aniquilação pura, simples e em sua forma mais rudimentar, de um objeto de relevante valor para a história da aviação? Quem o fez? Por quê o fez? Como evitar que isso ocorra novamente?
Antes de respondermos especificamente tais questionamentos, uma rápida pesquisa pela internet nos remete ao breve histórico dessa aeronave após sua aposentadoria dos céus. Ela fez seu último voo em 18 de agosto de 1971. A seguir, foi totalmente reformada e levada à exposição num espaço público no Aterro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro. Ali permaneceu por longos trinta (30) anos, sendo lentamente deteriorada e alvo de vandalismo. Foi então, transferido para frente de um edifício da Fundação Ruben Berta, no Aeroporto do Galeão. Ali repousou até seu fatídico epílogo.
Nesse contexto já se percebe que o esquecimento e sucateamento da aeronave não é recente; antes, decorre de vários anos, décadas. Seu destino, infelizmente, já parecia estar traçado ao repousar em terras nacionais depois de ter sobrevivido à Segunda grande Guerra Mundial.
Mas, voltando às questões levantadas, importante registrar que seu desmanche decorreu de ordem judicial, tomada em processo público com ampla participação das partes, da Administradora Judicial, do Ministério Público e demais credores e participantes na falência do grupo Varig.
O fato final, portanto, não ocorreu da noite para o dia. A um, porque a decisão foi proferida no dia 09/12/2019, e somente foi cumprida no dia 31/01/2020, sem que nenhuma das partes e/ou interessados no processo da falência tenha contra ela se insurgido mediante interposição dos recursos cabíveis. A dois, porque não se pode olvidar que aquela aeronave estava abandonada naquele local já há mais de uma década, e ninguém se apresentou oportunamente para sugerir ou auxiliar numa solução prática para o problema.
Do ponto de vista jurídico, portanto, entendemos terem sido seguidos os ritos da legalidade. O pleito formulado pela Administradora Judicial foi fundamentado juridicamente, embasado em relatórios técnicos e acompanhado de orçamentos. O Museu Aeroespacial foi consultado e não manifestou interesse em adquirir o avião. Para se ter dimensão do problema, apenas o custo do transporte girava em torno de duzentos mil reais; até mesmo modificações nas vias públicas eram exigidas para que esse deslocamento se consumasse. Nesse sentido, para aferição de tais dados, basta consultar os documentos disponibilizados no site da Administradora Judicial (http://sanordesteriosul.com.br/wp-content/uploads/2020/02/petição-e-documentos-recorte-do-avião.pdf).
Num panorama técnico, dentro dos autos do processo falimentar, a decisão do Juízo da Falência seguiu os critérios norteadores da matéria, sobretudo em vista da necessidade de desonerar a massa falida de modo a permitir atingir seu objetivo maior, qual seja, a satisfação do passivo remanescente. É verdade, no entanto, que no curso do processo poderiam ter sido sugeridas e/ou empreendidas diligências outras na tentativa de leiloar o bem ou doa-lo a outras entidades privadas imbuídas do ideal de salva-lo, o que de fato não ocorreu.
Mas apesar da técnica legalista e da burocracia, poderíamos ter presenciado outra sorte para o PP-VBF?
Os fatos e a história nos ensinam. Com os erros e acertos do passado, adequamos o presente e moldamos nosso futuro, driblando as encruzilhadas, superando as dificuldades e progredindo em direção ao aprimoramento da cultura e do conhecimento humano.
A preservação do patrimônio cultural e histórico brasileiros tem sede constitucional, nos artigos 215, 216 e 216-A, da Constituição da República, de 1988. Entretanto, tal como se extrai desse sistema de proteção, a responsabilidade não deve ser dirigida unicamente ao Estado, já bastante sobrecarregado de deveres a serem prestados aos cidadãos, estes carentes da efetivação dos mais basilares direitos de civis e sociais.
É momento de repensarmos as formas de preservação da história e da cultura, deixando de atribuir sempre e unicamente a responsabilidade às Autoridades Públicas, e chamar à responsabilidade a sociedade civil organizada, porém de forma proativa. Não mais basta a cômoda posição de aguardar o mal para depois remedia-lo ou maldize-lo. É preciso agir, antes e apesar do Estado.
No caso da aviação, temos exemplos bem sucedidos de preservação do seu conteúdo histórico e científico, manifestado na recuperação e manutenção de aeronaves por entusiastas, formação de museus particulares, restauração de aeronaves veteranas mediante financiamento coletivo, doação de aviões antigos para conservação por quem detém mais condições de faze-lo, leilões das massas falidas, etc.
Existem, enfim, meios de se conservar esse patrimônio brasileiro. Mas isso exige não apenas uma atuação estatal - a quem não se nega o dever constitucional - mas precipuamente da iniciativa privada, de maneira organizada, ativa, mediante conjugação de esforços com o Poder Público. Somente dessa forma, num País carente de tantas outras indigências, será possível alcançarmos êxito na preservação do patrimônio cultural e histórico, inclusive e sobretudo, da aviação.
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Confira aqui nossa participação no CANAL ASA, discutindo o referido caso.