Crime de atentado contra segurança do transporte aéreo: o número de vítimas enquanto circunstância judicial desfavorável.
Autor: Paulo Henrique Stahlberg Natal
Data: 17/08/2020
Acidente aéreo que marcou a aviação foi o decorrente da colisão em voo entre um Boeing 737-800, de uma companhia aérea brasileira e um jato executivo da Embraer, operado por pilotos americanos. O resultado do choque foi a queda do Boeing matando todos os 154 passageiros e tripulantes, ao passo em que o jato executivo sofreu avarias graves na asa e no estabilizador horizontal esquerdo, tendo pousando em emergência na base Aérea da Serra do Cachimbo.
O caso foi bastante divulgado em toda imprensa geral e especializada, e até hoje é objeto de estudo devido sua importância no âmbito aeronáutico e jurídico.
Paralelamente ao relatório do CENIPA, desenvolveram-se também o inquérito policial da Polícia Federal e a investigação militar.
O estudo do CENIPA se volta unicamente à pesquisa dos fatores contribuintes com objetivo de prevenir novos acidentes; não tem intuito punitivo. O inquérito policial da Polícia Federal tem por objetivo a apuração de eventual prática criminosa entre os envolvidos na ocorrência. E a investigação (inquérito policial militar) tem por finalidade apuração de eventual ocorrência de crime militar.
Esgotadas as atividades de investigação nesses três âmbitos, houve instauração de processo judicial militar e comum (federal). No primeiro, foram denunciados os controladores por crimes militares próprios, ao passo em que no segundo, foram denunciados os pilotos e controladores por crimes comuns (do Código Penal).
Os pilotos americanos do jato Embraer foram condenados definitivamente a uma pena de três anos, um mês e dez dias, em regime aberto, estando atualmente aguardando o início do cumprimento da pena, fundada em cooperação internacional.
Dentre os controladores de voo, dois deles sofreram também condenação perante a Justiça Federal comum, em julgamento conduzido pela terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (https://www2.cjf.jus.br/jurisprudencia/trf1/index.xhtml).
Em virtude da condenação confirmada no Tribunal Regional Federal, referidos controladores de voo recorreram ao Superior Tribunal de Justiça, por intermédio do Recurso Especial que recebeu o número 1.609.502 – MT. Buscaram, por intermédio da irresignação, a absolvição fundada em ausência de nexo causal e em virtude do estrito cumprimento do dever legal. O Ministério Público também recorreu, e o fez para buscar a exasperação da pena-base.
Referido Recurso Especial foi recentemente julgado pela quinta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, na data de 02/06/2020, publicado no DJe em 15/06/2020. Eis a ementa que sintetiza o resultado do julgamento:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSOS ESPECIAIS. RECURSO DA DEFESA. CRIME DE ATENTADO CONTRA A SEGURANÇA DE TRANSPORTE MARÍTIMO, FLUVIAL OU AÉREO QUALIFICADO. ACIDENTE AÉREO DO VOO 1907 DA GOL E DO JATO LEGACY. CONTROLADORES DE VOO. PRELIMINARES REJEITADAS. ABSOLVIÇÃO PELA AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE E PELO ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DOSIMETRIA DA PENA. RECONHECIMENTO DO VETOR CONSEQUÊNCIA COMO DESFAVORÁVEL. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. POSSIBILIDADE. NÃO INCOMPATIBILIDADE COM A FORMA QUALIFICADA PREVISTA NO ART. 263 DO CP. CAUSAS DE AUMENTO DOS ARTS. 121, § 4º, E 258 DO CÓDIGO PENAL. APLICAÇÃO. RECURSO ESPECIAL DA DEFESA PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO. RECURSO MINISTERIAL PARCIALMENTE PROVIDO.
1. Preliminares. Segundo entendimento desta Corte, a vigência, no campo das nulidades, do princípio pas de nullité sans grief implica que cabe à parte demonstrar a ocorrência de efetivo prejuízo, o que não ocorreu no presente caso;
2. Consoante jurisprudência pacificada nesta Corte, não há nenhum impedimento para que o Juízo das Execuções especifique quais serão as penas restritivas de direitos substitutivas.
3. Mérito. Alterar as conclusões a que chegou o Tribunal a quo a respeito das alegações pertinentes à absolvição pela ausência de nexo de causalidade ou pelo estrito cumprimento de dever legal, é imprescindível a incursão no conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 7/STJ.
4. A forma qualificada (art. 263 do CP) do delito previsto no art.261 do CP (atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo) prevê que, "se de qualquer dos crimes previstos nos arts. 260 a 262, no caso de desastre ou sinistro, resulta lesão corporal ou morte, aplica-se o disposto no art. 258." Desse modo, para a ocorrência da forma qualificada, basta que ocorra uma morte ou a lesão corporal. Ocorrendo qualquer um desses eventos, aplica-se o art. 258 do CP que determina a aplicação de um aumento de um terço sobre a pena prevista ao homicídio culposo (art. 121, § 3º, do CP).Entretanto, há previsão de aumento de um terço (art. 121, § 4º, do CP) nos casos em que o homicídio culposo foi praticado com inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício.
4. Não obstante a forma qualificada do delito de atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo exija o resultado morte, não se mostra incompatível a valoração desfavorável do vetor consequência em razão da morte de um número maior pessoas. É evidente que o delito desbordou da reprovabilidade normal ínsita ao próprio tipo penal.
5. No caso, o evento morte ocorreu de modo a atrair a qualificadora do art. 258 do CP. Entretanto, a conduta praticada pelos agentes resultou não somente uma morte, mas ceifou a vida de 154 pessoas que estavam a bordo da aeronave, o que justifica uma maior exasperação da pena-base em razão das consequências do crime.
6. Nos termos da jurisprudência desta Quinta Turma, correta a aplicação da causa de aumento prevista no art. 121, § 4º, do CP em razão de uma maior reprovabilidade pela ausência de observância das regras técnicas de profissão ou ofício na ocasião do cometimento da conduta criminosa.
7. Recurso especial de Jomarcelo e Lucivando parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. Recurso do Ministério Público Federal parcialmente provido.
(REsp 1609502/MT, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 15/06/2020).
Assim se manifestou o Ministro Ribeiro Dantas, em seu voto condutor:
“Nesse contexto, não obstante a forma qualificada do delito de atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo exija o resultado morte, não se mostra incompatível a valoração desfavorável do vetor consequência em razão da morte de um número maior pessoas. É evidente que o delito desbordou da reprovabilidade normal ínsita ao próprio tipo penal. No caso, o evento morte ocorreu de modo a atrair a qualificadora do art. 258 do CP. Entretanto, a conduta praticada pelos agentes resultou não somente uma morte, mas ceifou a vida de 154 pessoas que estavam a bordo da aeronave, o que justifica uma maior exasperação da pena-base em razão das consequências do crime.” (RECURSO ESPECIAL Nº 1.609.502 - MT (2016/0168412-6)
Conforme se afere da leitura da ementa e do voto condutor do Ministro Ribeiro Dantas, os julgadores entenderam que a multiplicidade de vítimas no delito do artigo 261, do Código Penal, atua como circunstância judicial desfavorável representando as consequências mais graves do crime.
Este também o entendimento da doutrina especializada em crimes aeronáuticos, aqui representada por seu maior expoente nacional, Juiz Federal, Dr. Marcelo Honorato, cujas lúcidas e explicativas palavras pede-se vênia para aqui transcrever:
“É bom lembrar que o objetivo da dosimetria da pena do condenado é cumprir com o mandamento constitucional de individualização da pena, considerando as características específicas de cada conduta, a pessoa do condenado e todas as consequências do delito, buscando a melhor medida de justiça ao caso concreto.
O que será valorado desfavoravelmente como consequência negativa da conduta não é o fato morte, que certamente está sendo empregada como deflagradora de uma causa de aumento (art.263), mas, sim, o fator multiplicador de cento e cinquenta e quatro, que não pode passar imune. Absolutamente desproporcional impor a mesma pena a um sujeito que produz a morte de uma pessoa e a quem gera uma centena de falecimentos, logo flagrante incorreção na dosimetria da pena, que deixa de ponderar elemento grave e não sopesado em qualquer outro momento”(HONORATO, Marcelo. Crimes Aeronáuticos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Luen Juris, 2019, p.83-84).
Em resumo, o que se decidiu é que em sede de delito tipificado no artigo 261, do Código Penal, a multiplicidade de vítimas fatais deve ser sopesada na exasperação da pena-base, atuando enquanto circunstância judicial desfavorável ao réu – consequências do crime - gerando sua fixação acima do mínimo, não sendo incompatível com a forma qualificada do delito (art.258, Código Penal).
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