Responsabilidade Civil dos Centros de Instrução Aérea em caso de acidentes e incidentes.
Paulo Henrique Stahlberg Natal
09/05/2020.
-I- Importância e delimitação do tema
O problema que se propõe a estudar, neste artigo, é o da responsabilidade civil decorrente do exercício de instrução de voo por intermédio de escolas de aviação em casos de acidentes e incidentes, considerando a relação entre o centro de formação e o aluno piloto[1], nas hipóteses de voo em duplo comando[2] (em que há presença simultânea do instrutor e do aluno da cabine de comando da aeronave).
A importância do tema proposto pode ser aferida mediante conferência dos números de tais ocorrências SIPAER na aviação brasileira. Pesquisa feita por intermédio do instrumento denominado “Painel Sipaer”, revela que entre os anos de 2010 a 2020, no segmento instrução, foram registrados: 218 acidentes, 137 incidentes graves e 367 incidentes[3].
De outra ponta, considerando o elevado crescimento do setor aéreo Brasileiro[4], resta evidenciada a necessidade de contínua formação de pilotos para atuarem tanto no mercado doméstico, quanto no estrangeiro.
A preocupação com o desenvolvimento e formação de pessoal para atendimento das necessidades de operação aeronáutica vem revelada, desde logo, pelo Código Brasileiro de Aeronáutica. Em seu artigo 25, dispõe que a infraestrutura aeronáutica compreende, dentre outros, o sistema de formação e adestramento de pessoal destinado à navegação aérea e à infraestrutura aeronáutica, cuja disciplina vem tratada em capítulo específico (Capítulo VIII, artigos 97 a 100).
O funcionamento de referido sistema, por sua vez, assim como demais atividades sociais, não fica alheio às vicissitudes que porventura venham a gerar. No campo civil, destaca-se justamente a responsabilização que emerge das atividades de instrução prática de voo e os potenciais danos que podem provocar ao próprio aprendiz (piloto-aluno) e a terceiros em superfície eventualmente atingidos.
-II- Tratamento legislativo do ensino e formação de pessoal
Conforme adiantado no item antecedente, o Código Brasileiro de Aeronáutica regulamentou, ainda que brevemente, o denominado “Sistema de Formação e Adestramento de Pessoal”, nos dizeres estritos do Capítulo VIII, da Seção III, da Lei n.º 7.565/1986.
Nesse passo, o Código partiu da definição de Aeroclube em seu artigo 97. E assim o fez, porque os serviços aéreos prestados por aeroclubes abrangem as atividades de ensino e adestramento de pessoal de voo e da infraestrutura aeronáutica (artigo 97, incisos I e II).
Além da atividade desenvolvida por Aeroclubes, o Código Brasileiro de Aeronáutica também se referiu a outras organizações que também praticam o ensino e a formação de aeronautas: as escolas ou cursos de aviação ou de atividade a ela vinculada.
Descendo ao campo das normas infralegais, em atendimento à própria previsão do artigo 99, do Código Brasileiro de Aeronáutica[5], encontraremos a disciplina quanto ao funcionamento de tais entidades em normativas expedidas pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). O poder regulamentar da Agência, por seu turno, emana da Lei n.º 11.182/2005, especificamente em seu artigo 8º, inciso XXII, o qual lhe cometeu a atribuição de regular, fiscalizar e autorizar os serviços aéreos prestados por aeroclubes, escolas e cursos de aviação civil.
O Regulamento Brasileiro de Aviação Civil n.º 141, estabelece os requisitos de certificação e regras de operação de um Centro de Instrução de Aviação Civil[6]. A ANAC expediu, ainda, Instruções Suplementares que definem procedimentos a serem adotados para certificação, quais sejam: IS 141-004 - Processo de certificação de centro de instrução de aviação civil pelo RBAC nº 141; IS 141-005 - Guia para implementação e manutenção do SGSO em Centros de Instrução de Aviação Civil certificados conforme o RBAC nº 141; IS 141-006 - Guia para implementação e manutenção do sistema de garantia da qualidade em CIAC.
Os Centros de Instrução (CIAC) que desenvolvam instrução prática em voo[7], incluindo treinamento de solo complementar (Item 141.13, do RBAC n.º 141), necessitam da outorga de Autorização Operacional publicada no D.O.U. e só poderão operar após sua publicação. Em relação ao processo de Outorga da Autorização para Operar, vem regulamentado pela Resolução ANAC n.º 377/2016 e pela Portaria n.º 616/SAS, de 16.03.2016, sendo conduzido pela Gerência Técnica de Outorgas e Cadastro – GTOC, da Gerência de Padrões Operacionais, na Superintendência de Padrões Operacionais – SPO. Por fim, a deliberação quanto a este processo de outorga é da Diretoria Colegiada da ANAC, conforme se extrai do artigo 11, inciso III, da Lei n.º 11.182/2006.
O RBAC n.º 141, no item 141.4, A(3), define os centros de instrução de aviação civil (CIAC) como “organização certificada cuja finalidade é formar recursos humanos para a aviação civil, conduzindo seus alunos para a obtenção das licenças, habilitações e certificados requeridos pela ANAC”.
O item 141.13, do RBAC n.º 141, dispõe sobre os três tipos de centros de instrução em aviação civil previstos; são eles: (1) CIAC Tipo 1, que desenvolverá exclusivamente: (i) instrução teórica e prática para os cursos que não envolvam instrução em aeronaves em voo; e (ii) instrução teórica para todos os outros cursos; (2) CIAC Tipo 2, que desenvolverá exclusivamente instrução prática em voo, incluindo treinamento de solo complementar; e (3) CIAC Tipo 3, que desenvolverá instrução em ambas as modalidades previstas para os CIAC Tipo 1 e 2. (b) Os CIAC Tipo 2 e Tipo 3 necessitam de autorização da ANAC, nos termos da Resolução nº 377, de 15 de março de 2016, para ministrarem instrução de voo.
Em arremate, o que concluímos, portanto, é que a atividade de formação de pessoal da aviação, em especial de pilotos, possui densa regulamentação, desde o nível infraconstitucional, por intermédio do Código Brasileiro de Aeronáutica e pela Lei Criadora da ANAC (11.182/2005), até o infralegal, este manifestado por intermédio do Poder normativo conferido à Autoridade de Aviação Civil (ANAC).
Este tratamento, consistente na obtenção de autorização de funcionamento mediante preenchimento de diversos requisitos se estendendo pela fiscalização do referido exercício da atividade, é representativo não apenas da importância, mas do risco envolvido no respectivo funcionamento desse sistema de adestramento de pessoal. A afirmação se confirma pela previsão encontrada no Item 141.27, no sentido de que o CIAC tipo 2 ou 3 deve estabelecer, implementar e manter um SGSO (Sistema de Gerenciamento de Segurança Operacional), aceitável para a ANAC, que garanta as condições de segurança da instrução e o cumprimento dos requisitos estabelecidos naquele Regulamento.
-III- Linhas gerais da responsabilidade civil
Antes de descermos ao tema especificamente relativo às consequências no âmbito da responsabilização civil dessas entidades de ensino prático da aviação, traçamos em nota introdutória ao assunto, breve apontamento sobre o instituto da responsabilidade civil.
O anseio de impor ao causador de um dano o dever de repara-lo, decorre da própria concepção de justiça, fundada, por sua vez, na antiga ideia de que a ninguém é dado lesar a outrem (brocardo neminem laedere).
A responsabilidade civil vem definida por Silvio Rodrigues[8], citando Savatier, “como a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam.”
Logo se nota, então, que o ponto fundamental da noção de responsabilização civil é o de saber se o dano experimentado pelo ofendido deve ser reparado por aquele que o causou. Para isso, necessário se faz perscrutar em que situações se impõe este dever.
A doutrina há muito faz uma repartição entre o dever de reparar um dano quando este decorre do descumprimento de um contrato, denominando-a, no caso de responsabilidade contratual, ou quando advém da prática de um ato ilícito não vinculado a um contrato, quando estaremos diante, então, da conhecida responsabilidade extracontratual ou aquiliana.
Em nosso Código Civil, a responsabilidade decorrente da quebra contratual vem tratada no artigo 389, o qual enumera os efeitos dali advindos, ao passo que a regra geral da responsabilidade extracontratual encontra base nos artigos 186 e 927. Já o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990) afastou-se dessa clássica divisão no que diz respeito à responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços, e assim o fez ao equiparar a consumidor, todos aqueles que de alguma forma foram atingidos pelo acidente de consumo[9].
Avançando no instituto em epígrafe, nos deparamos com a ideia de que o dever de reparação repousa na fonte primária da ação humana, a culpa. Conforme GONÇALVES[10] “Em face da teoria clássica, a culpa era fundamento da responsabilidade. Esta teoria, também chamada de teoria da culpa, ou ´subjetiva´, pressupõe a culpa como fundamento da responsabilidade civil. Em não havendo culpa, não há responsabilidade”
Com base nessa teoria, portanto, o dever de reparar o dano repousa na necessidade de demonstração da culpa do agente por uma de suas modalidades. Essa foi a regra geral adotada por nosso Código Civil, conforme se extrai da leitura do artigo 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Muitas vezes, contudo, este dever imposto à vítima da ofensa de provar a culpa do agente causador, acaba por gerar situações de manifesta injustiça, acarretando na prática a inviabilização da reparação.
O desenvolvimento da Revolução Industrial nos séculos XIX e XX, a massificação da produção e do consumo e a evolução do maquinismo e da automação, assim como mais recentemente a informatização da vida cotidiana geraram a necessidade de revisão do conceito tradicional da ideia de responsabilização atrelada unicamente à existência culpa do agente, fosse ela provada ou presumida. Segundo CAVALIERI FILHO[11], “Logo os juristas perceberam que a teoria subjetiva não mais era suficiente para atender a essa transformação social ocorrida em nosso século; constataram que, se a vítima tivesse que provar a culpa do causador do dano, em numerosíssimos casos ficaria sem indenização, ao desamparo, dando causa a outros problemas sociais, porquanto para quem vive de seu trabalho, o acidente corporal significa a miséria, impondo-se organizar a reparação”.
Essa transição do modelo de responsabilidade subjetiva para objetiva não ocorreu de forma célere; antes, foi fruto de longa construção jurisprudencial e doutrinária.
Chegou-se, então, à concepção de responsabilidade objetiva, a qual, basicamente, se resume na possibilidade de impor o dever de reparação à vítima, independentemente de culpa do agente. Basta a existência de nexo de causalidade entre o dano e o ato do agente.
Na busca do fundamento para esta modalidade de responsabilização civil, os jurisconsultos conceberam o que veio a ser denominada teoria do risco. Nos dizeres de RODRIGUES[12] “Segundo essa teoria, aquele que, através de sua atividade, cria um risco de dano para terceiros deve ser obrigado a repara-lo, ainda que sua atividade e o seu comportamento sejam isentos de culpa”.
Em nosso Código Civil, a teoria do risco enquanto fundamento para a responsabilidade objetiva encontra amparo na letra do artigo 927, parágrafo único: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Outras legislações especiais, contudo, também fazem referência à responsabilidade sem culpa, como é o caso, exemplificativamente, do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n.º 7.565/1986), Lei Ambiental n.º 6.938/81, e também e principalmente o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990).
-IV- Classificação das atividades de instrução prática de voo desenvolvidas pelos CIAC´s.
O Código Brasileiro de Aeronáutica – marco regulatório do nosso direito aeronáutico em âmbito doméstico – por seu artigo 174, divide os serviços aéreos em públicos e privados.
Os primeiros (públicos) abrangem os serviços aéreos especializados públicos e os serviços de transporte aéreo público de passageiro, carga ou mala postal, regular ou não regular, doméstico ou internacional.
Paralelamente, nos termos do artigo 177, os serviços aéreos privados são os realizados, sem remuneração, em benefício do próprio operador (artigo 123, II) compreendendo as atividades aéreas: I - de recreio ou desportivas; II - de transporte reservado ao proprietário ou operador da aeronave; III - de serviços aéreos especializados, realizados em benefício exclusivo do proprietário ou operador da aeronave.
No âmbito infralegal, observamos que a Resolução ANAC n.º377, de 15 de março de 2016, arrola e conceitua os serviços aéreos públicos, por intermédio do Anexo da referida norma; em seu item 1.2.15, conceitua o ensino e adestramento como a atividade de voo de instrução prestada por entidade certificada para formação de pessoal de aviação (Redação dada pela Resolução nº 514, de 25.04.2019).
Vemos, portanto, que o desenvolvimento da atividade de ensino e formação de pessoal voltado à atividade aeronáutica, no caso, aqui, especificamente pilotos, é uma subespécie da modalidade de serviço aéreo público especializado.
A importância dessa classificação se faz justamente para averiguação das consequências daí advindas para as hipóteses de responsabilidade civil tratadas no Código Brasileiro de Aeronáutica e na legislação geral e especial como um todo.
-V- A responsabilidade civil tratada no Código Brasileiro de Aeronáutica
O Título VIII, Capítulo I, do Código Brasileiro de Aeronáutica, é destinado à disciplina da responsabilidade contratual do transportador, por danos ocorridos durante a execução do contrato de transporte aéreo.
No Capítulo II, há tratamento quanto à responsabilidade por danos em serviços aéreos gratuitos, enunciando o artigo 267 que:
Quando não houver contrato de transporte (artigos 222 a 245), a responsabilidade civil por danos ocorridos durante a execução dos serviços aéreos obedecerá ao seguinte: I - no serviço aéreo privado (artigos 177 a 179), o proprietário da aeronave responde por danos ao pessoal técnico a bordo e às pessoas e bens na superfície, nos limites previstos, respectivamente, nos artigos 257 e 269 deste Código, devendo contratar seguro correspondente (artigo 178, §§ 1° e 2°);II - no transporte gratuito realizado por empresa de transporte aéreo público, observa-se o disposto no artigo 256, § 2°, deste Código; III - no transporte gratuito realizado pelo Correio Aéreo Nacional, não haverá indenização por danos à pessoa ou bagagem a bordo, salvo se houver comprovação de culpa ou dolo dos operadores da aeronave.”
A seguir, no Capítulo III, do Título VIII, o Código regula a responsabilidade para com terceiro na superfície, ao passo em que no seguinte, Capítulo IV, discorre sobre a responsabilidade por abalroamento.
O Capítulo V, é dedicado ao dever de reparação imposto ao Construtor Aeronáutico e às Entidades de Infra-Estrutura Aeronáutica.
Como se observa, então, a despeito de classificada a atividade de formação e adestramento de pessoal como sendo espécie do gênero serviço aéreo público, na modalidade serviço aéreo especializado, não houve tratamento específico da responsabilidade civil das entidades de ensino e instrução prática de voo por danos causados aos aprendizes (piloto aluno).
Disso decorre a necessidade de buscar no ordenamento jurídico uma interpretação sistemática da legislação para aferir a questão atinente à responsabilidade civil dos Centros de Instrução em caso de ocorrência de acidentes e incidentes que geram danos ao aluno e a terceiros.
-VI- Da relação jurídica entre o aluno e o CIAC e respectiva responsabilidade civil
Nesse ponto, devemos atentar que vários são os motivos que levam o pretendente a piloto a dar os primeiros passos no ramo da aviação. Pode ser impelido por mero espírito de emulação, pode estar buscando um hobby, assim como pode almejar o início de uma carreira como piloto profissional. Em qualquer dessas situações, independentemente do desejo que aspira, ele está adstrito, regra geral, à necessidade de buscar o amparo de uma entidade de ensino, agora denominada no RBAC n.º 141, como Centro de Instrução de Aviação Civil.
Em que pese não haja necessidade de matricular-se em instituição de ensino para submeter-se à instrução teórica do Curso de Piloto Privado e respectiva Banca de Exame da ANAC, não é menos verdade que na grande maioria das vezes a instrução prática será realizada por intermédio destes Centros de Formação.
Modernamente, o País se vê frente a um processo de desregulamentação do mercado de aviação civil iniciado com maior força no início dos anos 2000 e reforçado com a criação da Agência Nacional de Aviação Civil em 2006.
Esse cenário foi acompanhado de elevado aumento na demanda de transporte aéreo e expansão aeroportuária – sobretudo com o início das concessões de aeroportos à iniciativa privada a partir de 2011 – o que impulsionou a criação de novos modelos de instituições de formação e ensino de aviação civil mais consentâneos com a dinâmica e competitividade do mercado do século XXI, em franca substituição aos antigos aeroclubes que visavam fomentar a prática do aerodesporto e também a própria formação de pilotos, porém com objetivos unicamente patrióticos e idealistas.
A era da competitividade e da livre concorrência aliada à ausência de subsídios estatais pressionaram estas antigas associações/sociedades civis, obrigando-as a tornarem-se competitivas, migrando para um modelo empresarial, sob pena de bancarrota e alijamento do mercado.
Fato é que alguns daqueles Aeroclubes, verdadeiros sobreviventes de uma Era que já pertence mais ao domínio da história do que à realidade, hoje se enquadraram no conceito de verdadeiros organizadores de atividade empresarial. São fornecedores de produtos e serviços, se expõem e competem no mercado como as demais entidades de ensino criadas e desenvolvidas com objetivo puramente empresarial (escolas de aviação); fazem publicidade para atraírem clientela, organizam capital, mão de obra, insumos e tecnologia. Enfim, agem de modo profissional, aproximando-se mais do conceito de empresários (artigo 966, do Código Civil) e fornecedores (artigo 3º, da Lei n.º 8.078/1990), do que de associações e sociedades civis sem fins lucrativos e pautadas pelo mero idealismo de seus associados. Entretanto, não se pode desprezar que a despeito de tais características subsistem juridicamente sob aquela vetusta forma, limitando-as à competitividade, o que pode suscitar dúvidas quanto à subsunção das regras legais no quesito respeitante à responsabilidade civil.
No que diz respeito às entidades de ensino, que não sejam os Aeroclubes, aqui denominada ao fim proposto como escolas de aviação, classificadas também como CIAC´s Tipo 2 e 3, nos termos do RBAC n.º 141, parece-nos extreme de dúvidas que devido às suas características fáticas e formatação jurídica, subsumem-se na figura do conceito de Fornecedor, conceituada pelo artigo 3º, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a saber:
“Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”
Nessa quadra, portanto, o que se tem é a existência de uma relação jurídica contratual entre piloto aluno e entidade de ensino,. E mais: uma relação contratual de consumo, pois além de haver o enquadramento daquela escola na figura de fornecedora, parece-nos correto afirmar que o aspirante a piloto se adequa no âmbito daquele relacionamento como consumidor, já que se coloca enquanto destinatário final do serviço adquirido (artigo 2º, da Lei n.º 8.078/1990).
Nesse passo, pede-se vênia para transcrição de trecho do Voto n.º 29.293, nos autos da apelação nº 1011998-73.2016.8.26.036, Relator Desembargador Tasso Duarte de Melo, julgado em 10/02/2020, em que pontua justamente a natureza dessa relação havida entre o centro de instrução e o candidato a profissional do mercado de aviação: (...) O serviço foi contratado pelo aluno na condição de destinatário final do curso de aviação civil, estando devidamente configuradas as posições de consumidor e de fornecedor, na forma do CDC”.
Havendo, assim, relação jurídica contratual de consumo, a sua disciplina será analisada à luz dos regramentos específicos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Dentre os regramentos específicos que devem nortear estas relações, estão, dentre outros, aqueles atinentes ao dever de reparar integralmente o dano causado ao consumidor, tema objeto central deste estudo.
Conforme sustentado linhas atrás no começo deste artigo, a atividade desenvolvida pelos Centros de Instrução de Aviação Civil (CIAC), classificados como ministrantes de instrução prática de voo, é evidentemente de risco.
O ato de voar não é natural ao ser humano, a despeito de ser um desejo ocupante de seu imaginário desde sempre. Ocupar o espaço aéreo não é algo que esteja intrínseca e naturalmente ligado ao Homem, não sendo, aquele, portanto, nosso habitat natural. Assim, voamos por intermédio de artefatos tecnológicos e mediante domínio do estado da técnica conforme a evolução da humanidade.
Justamente por nos valermos de máquinas operadas mediante reações mecânicas, aerodinâmicas e eletrônicas, é que a atividade se apresenta essencialmente e por si, arriscada. Voar é um risco controlado.
Ao longo da história vivenciamos diversos estágios de preocupação com o voo e seus efeitos. Num primeiro momento concentrava-se na própria tentativa de criação das máquinas que nos levariam aos céus, sem qualquer resguardo com a segurança. Num segundo momento, foi possível observar que haveria necessidade de certa qualificação técnica para opera-las. Ao depois, com o passar das eras, fomos constantemente evoluindo e percebendo a necessidade de operar os objetos voadores com segurança.
Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, com o excedente da produção mundial de aeronaves, a aviação registrou grandes avanços, sobretudo na área civil, com o transporte de pessoas e cargas. Foi em 1944, aliás, que surgiu a OACI, enquanto agência da ONU voltada à regulamentação de padrões mínimos internacionais, sempre visando a segurança operacional e o desenvolvimento da aviação civil em tempos de paz e para sua manutenção.
Nesse cenário atual, vivenciamos uma era em que busca pela segurança é ainda mais intensa, seja em razão de questões financeiras (custo dos acidentes e incidentes) seja por razão humanitária (evitar a perda de vidas).
Em que pese o aspirante a piloto de aeronaves tenha naturalmente consciência desse risco por um lado e de outro o centro de instrução atenda ao disposto no artigo 9º[13], da Lei n.º 8.078/1990, nem por isso esta entidade que ministra os cursos de instrução prática estará a salvo de eventual responsabilização, já que está adstrita às regras de responsabilidade civil por fato do serviço (artigo 14 do mencionado Código).
Ao contratar com o CIAC, o consumidor (piloto aluno) o faz com o intuito de obter a qualificação necessária e esperada mediante desenvolvimento de habilidades técnicas e motoras ao manejo seguro de um determinado tipo de aeronave. Ele se vale, portanto, do conhecimento, da expertise e de todo material de suporte e infraestrutura da entidade de instrução para obter a capacitação esperada e prometida no contrato, obviamente adstrito às condições e limitações pessoais.
Aqui nessa quadra, insere-se a densificação do tema objeto do presente estudo. Isto porque, uma vez advindo um acidente, incidente grave ou apenas incidente, operado durante instrução em duplo comando (com instrutor a bordo) que venha a causar danos ao aluno piloto, haverá o disparo da regra jurídica atinente à reparação do prejuízo sofrido. E com isso, surgirá, por consequência, o questionamento a respeito do tipo de responsabilidade civil aplicável, se subjetiva ou objetiva.
Insta registrar, por oportuno, que estamos a pressupor a maioridade civil do piloto aluno e a hipótese de voo em duplo comando.
Feita a anotação, devemos ter em mente que na relação havida entre instrutor e aprendiz, o primeiro sempre é responsável pela segurança do voo, a ele cometida a obrigação e o dever de agir de modo compatível em resguardar a vida, a saúde e a segurança dos envolvidos na operação que realiza. Ademais, age o instrutor de voo, como preposto do CIAC. A propósito, assim dispõe o RBAC m.º 141, tem seu item 141.46(g):
“(g) Um instrutor de voo do CIAC deve, antes de cada instrução de voo, certificar-se que a aeronave se encontra aeronavegável, com a autonomia adequada para o voo, mantida em obediência aos requisitos de aeronavegabilidade, dentro dos limites de desempenho aprovados da aeronave quanto ao peso e balanceamento, e possui a bordo toda a documentação requerida para o voo, seguindo o procedimento de despacho previsto no MIP.”
O que se tem, na hipótese de um acidente ou incidente envolvendo esta situação de voo em duplo comando, é que de algum modo houve falha na prestação de serviços contratados, seja em virtude de eventual inaptidão do instrutor, seja em razão de deficiência de qualquer tipo na própria aeronave (pane de mecânica, elétrica, eletrônica, falha estrutural, perda de controle, dentre outras).
A eclosão do evento (acidente ou incidente) fere o dever genérico de qualidade e segurança previstos nos artigos 8º e 9º, da Lei n.º 8.078/1990, e que o consumidor legitimamente espera encontrar ao estabelecer a relação contratual com fornecedor de serviços.
Importante apontar que o próprio RBAC n.º 141 fixa a necessidade de um sistema de garantia da qualidade significando um conjunto sistemático de atividades planejadas que a organização realiza a fim de demonstrar o compromisso com a qualidade e a satisfação do usuário (Subparte B,item 141.29), bem como a implementação de um sistema de gerenciamento de segurança operacional que garanta as condições de segurança da instrução (Subparte B,item 141.27). Em complemento, a Instrução Suplementar ANAC n.º 141-006, aprovada pela Portaria nº 2.000/SPO, de 1º de julho de 2019, Item 5.1.1, aponta que “A finalidade do SGQ é aumentar a conscientização do CIAC sobre seus deveres e comprometimento em atender às necessidades e expectativas de seus clientes e partes interessadas, alcançando a satisfação em suas atividades de treinamento. Essa satisfação é atingida garantindo-se que a instrução ministrada atinja os objetivos propostos e que todos os procedimentos do CIAC se mantenham de acordo com os requisitos estabelecidos no RBAC nº 141.”
A propósito, o parágrafo primeiro do artigo 14, da Lei n.º 8.078/90, conceitua o serviço como defeituoso, quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais, o modo de seu fornecimento, o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam e a época em que foi fornecido.
Portanto, é dever do fornecedor dos serviços zelar pela qualidade e segurança, adotando todas as medidas cabíveis para evitar falhas que possam acarretar danos aos usuários, primando pelos princípios da segurança e boa-fé que regem as relações de consumo.
Uma vez mais, repise-se, não se cogita que o risco inerente à atividade de voar, mesmo que em instrução prática, seja capaz de afastar o dever de reparação, pois a prevalecer tal raciocínio, não se haveria cogitar em indenização para casos de acidentes, por exemplo, em atividades radicais exploradadas comercialmente ou até mesmo em parques de diversões; não haveria se falar na responsabilização, em última hipótese, no próprio serviço de transporte aéreo. E a razão de ser do afastamento dessa escusa repousa justamente na substituição da clássica teoria da culpa pela teoria do risco, esta como base da responsabilidade objetiva.
Nas hipóteses em comento não se há mais dizer que o dano foi causado pela pessoa pelo fornecedor em si. Não. Ocorre o denominado fato do serviço conforme nominado pela própria legislação consumerista (Capítulo IV, Seção II, da Lei n.º 8.078/1990). Nas palavras de KHOURI[14], “O CDC, simplesmente, no tocante à responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, rompe com a ideia de culpa e impõe ao fabricante, ao fornecedor de serviços, a obrigação de indenizar sempre que seus produtos ou serviços causarem danos à saúde ou segurança dos consumidores. É o que se denomina acidente de consumo.”
A conclusão alcançada, portanto, é a de que a atividade desenvolvida pelo Centro de Instrução de Aviação Civil, Tipo 2 ou 3 (instrução prática de voo) é evidentemente de risco. Aqui, cuida-se de risco-proveito, pois o fornecedor aufere proveito econômico, visando lucro ao explorar esta específica atividade; em contrapartida, a teor da legislação consumerista, responde por todos os riscos derivados do consumo desses serviços.
Para CAVALIERI[15], “Risco é perigo, é probabilidade de dano, importando, isso, dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente. A doutrina do risco pode ser, então, assim resumida: todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano”.
Nos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade dos Centros de Instrução de Voo, na qualidade de prestadores de serviços (escolas de aviação), é objetiva, devendo responder independentemente de aferição de culpa pelos danos causados ao aluno piloto, este na figura de consumidor. Desta forma, basta ao aprendiz ou por quem o faça as vezes em caso de óbito, demonstrar os danos experimentados e o nexo de causalidade entre a conduta da requerida e o resultado danoso.
De outro lado, aos CIAC´s resta aberta a possiblidade legal de comprovarem alguma das excludentes de responsabilidade previstas no parágrafo terceiro do artigo 14, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor[16], já que não se trata de modalidade de risco integral.
-VII- Da responsabilidade civil do CIAC frente a terceiros atingidos em superfície.
Conforme explorado no item antecedente, os Centros de Formação e Ensino da Prática de Voo desempenham uma atividade de risco, explorando-a comercialmente, razão pela qual se enquadra no conceito de fornecedora a teor do artigo 3º do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Nessa quadra, portanto, a leitura conjunta e complementar entre o Código Brasileiro de Aeronáutica e o Código de Proteção do Consumidor nos revela a responsabilidade por eventuais danos por eles causados a terceiros em superfície.
Com efeito, o artigo 268, do Código Brasileiro de Aeronáutica estabelece que o explorador responde pelos danos a terceiros na superfície, causados, diretamente, por aeronave em voo, ou manobra, assim como por pessoa ou coisa dela caída ou projetada; e complementa apontando que prevalece esta responsabilidade do explorador mesmo quando a aeronave é pilotada por seus prepostos, ainda que exorbitem de suas atribuições (§1º).
O Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei n. 7.565/86, na forma destacada por CARLOS ROBERTO GONÇALVES, citando Luís Camargo Pinto de Carvalho, “abraçou a teoria objetiva, visto que impôs responsabilidade ao transportador como decorrência do risco da sua atividade....” (in Responsabilidade Civil, Editora Saraiva, p. 301).
Por sua vez, na forma do item 141.45(b), do RBAC n.º 141, o CIAC deverá constar no Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB) como operador da aeronave utilizada para ministrar instrução.
De outro lado, o artigo 17 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor traz a previsão de que equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.
Assim, no caso da queda de uma aeronave em instrução, o piloto aluno é vítima do episódio danoso, originado no fato do serviço prestado pela entidade de ensino, ao passo em que aqueles que porventura forem atingidos na superfície, mesmo não tendo relação direta com a relação de consumo - pois não fazem parte daquele contrato - são equiparados legalmente ao consumidor, recebendo todas as garantias materiais e processuais versadas na Lei n.º 8.078/1990.
-VIII- Da responsabilidade civil dos Aeroclubes
Conforme já apontado em linhas anteriores, os Aeroclubes também são espécies de Centros de Instrução de Aviação Civil, submetendo-se aos ditames do Regulamento Brasileiro de Aviação Civil n.º 141.
No entanto, diferentemente das empresas constituídas com finalidade de oferecimento de serviços de instrução aérea diretamente ao mercado de consumo, constituídas sob a forma de sociedades lucrativas, os Aeroclubes são entidades sem finalidade lucrativa, pautadas por idealismo de seus fundadores e associados. Dentre suas atividades, encontra-se o adestramento de pessoal e o ensino da prática de voo (artigo 97, Código Brasileiro de Aeronáutica e Decreto-Lei n.º 205/1967).
Questiona-se, nesse campo, portanto, qual seria a relação estabelecida entre o piloto aluno e o Aeroclube, se de consumo ou meramente associativa. A resposta encontrada é deveras importante, pois daí exsurgem conclusões distintas quanto às normas de responsabilidade civil aplicáveis.
Conforme dito alhures, estas entidades não se constituem enquanto empresa; são associações e sociedades civis, sem fins lucrativos e reconhecidas por lei (Código Brasileiro de Aeronáutica e Decreto-Lei n.º 205/1967). Possuem patrimônio e administração próprios, com serviços locais e regionais, cujos objetivos principais são o ensino e a prática da aviação civil, de turismo e desportiva em todas as suas modalidades, podendo cumprir missões de emergência ou de notório interesse da coletividade.
Nesse cenário, duas posições podem ser sustentadas: a primeira no sentido de que os Aeroclubes enquanto entidades associativas mantém relação de fruição de benefícios com os associados; a segunda, de que nas hipóteses em que interagem ativamente no mercado enquanto participantes da sociedade de consumo, figuram como verdadeiras fornecedoras de serviços, subsumidas nos contornos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Pelo primeiro posicionamento, a relação entre os associados e a associação ou sociedade civil sem fins lucrativos, é de natureza social, estatutária, e não contratual como ocorre com outras escolas de aviação classificadas como CIAC´s e tratadas nos tópicos anteriores. Assim, quando estes Aeroclubes ofertam os serviços de formação e ensino prático de voo, inexiste relação de consumo propriamente dita. Não há então, consumo, mas fruição dos benefícios daquela agremiação. Afastam-se as regras e garantias preconizadas no Código de Proteção e Defesa do Consumidor nessas hipóteses.
A conclusão, entretanto, não parece significar que o Aeroclube não tenha dever reparatório frente aos danos gerados ao aluno piloto durante instrução de voo em duplo comando. Há apenas o deslocamento do fundamento jurídico de sua responsabilização, migrando do campo da relação de consumo, para a figura do Direito Civil Comum, em que a responsabilidade civil no tipo de atividade desenvolvida é objetiva.
Haverá para as ocorrências de acidentes e incidentes, então, a fixação da modalidade de responsabilidade que se baseia na teoria do risco e está prevista no parágrafo único do art. 927 do Código Civil, parte final: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
Nesse passo, interessante citar precedente jurisprudencial advindo do Tribunal de Justiça de São Paulo:
Apelação Cível – Responsabilidade Civil – Escola de aviação – Acidente fatal – Presidente e diretores do aeroclube – Ilegitimidade passiva ad causam – Configuração. Apelação Cível – Responsabilidade Civil – Escola de aviação – Queda de aeronave durante um voo de instrução que acarretou a morte do filho dos requerentes – Responsabilidade civil objetiva – Instrutora que, a despeito de estar ciente das condições climáticas desfavoráveis no destino, assumiu o risco ao decolar e causou o óbito do aluno – Danos materiais e morais devidos. Apelação Cível – Multa por litigância de má-fé – Cabimento – Aeroclube requerido que juntou documento falso – Falsidade confirmada por meio de prova pericial. Recurso parcialmente provido.
(TJSP; Apelação Cível 1009395-40.2015.8.26.0562; Relator (a): José Roberto Furquim Cabella; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/08/2019; Data de Registro: 23/08/2019).
O julgado retrata justamente a hipótese de responsabilização civil de um Aeroclube, no caso de acidente fatal envolvendo queda de aeronave durante instrução prática de voo e que vitimou um piloto aluno; e o fundamento encontrado pelos eminentes julgadores foi o de que a atividade desenvolvida pelo Aeroclube atrai a responsabilidade civil objetiva derivada do risco da atividade (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil). Conforme se extrai do voto condutor, da lavra do e. Desembargador José Roberto Furquim Cabella, não se cogitou de aplicabilidade do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, mas justamente da regra do Direito Civil Comum. Transcreve-se trecho nesse sentido do referido voto[17]:
(...)
“Feitos esses esclarecimentos, consigne-se, por oportuno, que a responsabilidade civil no tipo de atividade desenvolvida pelo réu é objetiva. Tal modalidade de responsabilidade se baseia na teoria do risco e está prevista no parágrafo único do art. 927 do Código Civil: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Nessa conformidade, “mutatis mutandis”, julgou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Indenização. Responsabilidade objetiva. Curso de pilotagem de aeronaves. É objetiva a responsabilidade de quem ministra curso de esportes de riscos, como a pilotagem de aeronaves, devendo indenizar os danos materiais e morais ocorrentes aos alunos e seus familiares, independente de cogitar-se de possível culpa, que se presume. Na relação aluno-instrutor, é de entender-se que este é que pilotava a aeronave, já que o aluno deveria cumprir suas determinações” (TJRS, 3ª C. Rel. Des. Gaspar Marques Batista, RT 732/413).”
Pelo segundo posicionamento, ou seja, de que os Aeroclubes, quando interagem no mercado de consumo como verdadeiros competidores em busca de alunos, veiculando publicidade, propaganda e organizando-se profissionalmente, o fazem de modo a equiparar-se aos fornecedores de serviço; por consequência, a relação entre o piloto aluno e a instituição seria de consumo. Para esta corrente, então, eventual ocorrência de acidente ou incidente seria resolvida à luz da lei consumerista e dos princípios e garantias próprios que lhe são regentes, tal como ocorre com as demais sociedades empresárias criadas (escolas de aviação) com propósito de exploração do mercado de consumo de instrução aérea (retratadas nos itens VI e VII, supra).
A confirmar o raciocínio traçado por este segundo posicionamento do parágrafo anterior, convém destacar trecho de acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, por intermédio do qual restou fixado sobrepor-se à forma de constituição, a própria realidade fática de exploração do negócio; seria dizer que prevalece a primazia da realidade em defesa do consumidor. Nesse sentido:
(...)
De início, registro que, na situação, evidente a relação de consumo, nos termos dos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor. Aplicável, pois, o regime jurídico disciplinado pelo Código de Defesa do Consumidor, em que a apelante é fornecedora e o apelado, consumidor. No caso concreto, a apelante, embora constituída como associação privada, atua no mercado como se empresa seguradora fosse. Compulsando os autos, resta evidente que a suposta “associação” se traduz em verdadeira prestação de serviços, semelhante ao contrato de seguro, atividade restrita às empresas autorizadas pelo Poder Público para atuar nesse ramo.”[18]
- IX - Conclusão
Ante o exposto nas linhas acima, podemos concluir:
- A instrução prática de voo ocorre por intermédio de organizações de ensino próprias, devidamente regulamentadas e autorizadas pela ANAC.
- Dentre essas entidades, temos os Aeroclubes e os Centros de Instrução de Aviação Civil.
- A atividade de instrução prática de voo ao aluno piloto é uma atividade eminentemente de risco por sua própria natureza.
- A relação havida entre o aluno piloto e o Centro de Instrução de Aviação Civil é de consumo, atraindo, portanto, as regras de regência consumeristas para regular este relacionamento.
- Em caso de acidente ou incidente a envolver aluno piloto em duplo comando, o CIAC responde objetivamente, com base nos artigos 14 e 17 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
- Os Aeroclubes ostentam posição intermediária. São sociedades civis sem fins lucrativos; porém, podem eventualmente competir no mercado tal como outros CIACs e escolas de ensino, organizando-se empresarialmente e enquadrando-se no conceito de fornecedor nos termos do Código do Consumidor.
- A responsabilidade civil dos Aeroclubes em caso de acidentes e incidentes é objetiva, seja com base no artigo 14 do Código de Proteção do Consumidor, seja em virtude do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil.
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NOTAS/REFERÊNCIAS:
[1] No âmbito infralegal, o Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) nº 61, traz as condições relativas à utilização de licenças, certificados, habilitações e autorizações para pilotos, inclusive do aluno piloto. Este Regulamento estabelece as normas e procedimentos relativos à concessão de licenças, habilitações e certificados para pilotos; os requisitos e padrões mínimos que devem ser cumpridos para a concessão e revalidação desses documentos e as prerrogativas e limitações relativas a cada licença, habilitação ou certificado (item 61.1).
[2] Item 141.45(f), RBAC 141: Toda aeronave utilizada para instrução de voo pelo CIAC deve possuir pelo menos dois postos de pilotagem, com manetes de potência e comandos de voo que possam ser facilmente alcançados e operados por ambos os postos, exceto planadores, aeronaves agrícolas ou, se tecnicamente justificado pelo CIAC e aprovado pela ANAC, qualquer outra aeronave.
[4] Nesse sentido notícia veiculada pelo Portal Folha de São Paulo que exemplifica o crescimento do mercado de aviação civil nacional:
“(...) Quinze anos após a plena entrada em vigor da política de liberdade tarifária, a partir de 2002, a tarifa média para voos domésticos caiu de R$ 703,07 para R$ 357,16 - sendo que 53% das passagens vendidas em 2017 ficaram abaixo de R$ 300 (fonte: ANAC).
O resultado foi o maior boom já vivido pelo setor no Brasil: o número de passageiros triplicou, saltando de 31 milhões em 2002 para quase 94 milhões em 2018. O volume de embarques chegou próximo a 100 milhões em meados de 2014 e 2015, mas em 2016 o setor enfrentou um de seus piores anos e, com a crise econômica, o total recuou para menos de 90 milhões. (...)”
Desregulamentação do setor aéreo estimula crescimento de companhias. Folha de São Paulo, Estúdio Folha. 2019.Disponível em: <http://estudio.folha.uol.com.br/brasil-que-voa/2019/03/1987434-desregulamentacao-do-setor-aereo-estimula-crescimento-de-companhias.shtml>. Acesso em: 06 de maio de 2020.
[5] Art. 99. As entidades referidas no artigo anterior só poderão funcionar com a prévia autorização do Ministério da Aeronáutica. Parágrafo único. O Poder Executivo baixará regulamento fixando os requisitos e as condições para a autorização e o funcionamento dessas entidades, assim como para o registro dos respectivos professores, aprovação de cursos, expedição e validade dos certificados de conclusão dos cursos e questões afins.
[6] Item 141.1. Este Regulamento estabelece os requisitos de certificação e regras de operação de um centro de instrução de aviação civil (CIAC), voltado para a formação e qualificação de pilotos, comissários de voo, mecânicos de voo, despachantes operacionais de voo e mecânicos de manutenção aeronáutica postulantes a uma licença, habilitação ou certificado requeridos pelo RBAC nº 61, RBHA 63 (ou RBAC que vier a substituí-lo) ou RBAC nº 65.
[7] Nos termos do Anexo à Resolução ANAC n.º 377, de 15 de março de 2016, mais especificamente item 1.2.15, “ensino e adestramento significa a atividade de voo de instrução prestada por entidade certificada para formação de pessoal de aviação”. (Redação dada pela Resolução nº 514, de 25.04.2019).
[8] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, v.4: Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2002. 19ª Ed., p.6.
[9] Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.
[10] GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. 14ª Ed., p.59.
[11] CAVAILERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2007. 7ª Ed., p.127.
[12] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, v.4: Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2002. 19ª Ed., p.11.
[13] Art. 9° O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.
[14] KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2005. 2ª Ed., p.158.
[15] CAVAILERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2007. 7ª Ed., p.143.
[16] § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
[17] Apelação Cível nº 1009395-40.2015.8.26.0562, Voto nº 16358.
[18] Apelação Cível 1005767-15.2018.8.26.0020; Relator (a): Sá Moreira de Oliveira; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XII - Nossa Senhora do Ó - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 20/10/2017; Data de Registro: 04/05/2020).
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