O acidente ocasionado por colisão em pleno ar, envolvendo o voo GOL 1907 e o jato Embraer Legacy -
Por Paulo Henrique Stahlberg Natal.
18/04/2020.O dia 29 de setembro de 2006, marcou de forma triste e indelével a história da aviação brasileira. O acidente envolvendo um voo comercial da empresa aérea GOL, de n.º 1907 e um jato executivo, da Embraer, modelo Legacy, acabou ceifando os destinos e sonhos de 154 vidas.
A perplexidade pela forma extremamente improvável do ocorrido, ou seja, a colisão em voo entre duas aeronaves num vasto espaço aéreo como o do Brasil, e o resultado apenas da queda do Boeing, suscitaria diversos questionamentos, alguns até hoje pendentes de solução.
O caso em epígrafe foi bastante marcante, portanto, seja sob o aspecto da investigação aeronáutica, seja no meio jurídico, seja, ainda por conta das repercussões políticas alcançadas.
Do ponto de vista político, tivemos, após o fato, a instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito para investigação a respeito dos sistemas de navegação e controle do espaço aéreo. Isso se deu envolto num período conhecido de "caos aéreo", advindo em razão do afastamento de alguns controladores para sem alvo de investigação em virtude do referido acidente; seguiu-se, então, uma denominada operação padrão por parte dos operadores para denunciar o excesso de carga horária e condições inadequadas de trabalho.
Na órbita aeronáutica, o referido acidente apresentou grande desafio para as autoridades da época. Em primeiro lugar, houve extrema dificuldade para acessar os destroços da aeronave Boeing 737; houve grande pressão da mídia a respeito das soluções e respostas para o ocorrido. O momento era de transição na atividade regulatória, posto que até 2005, era operada pelas Forças Armadas (por intermédio do DAC), sendo que àquela época do acidente havia sido recém criada a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), de modo que chegou a haver até mesmo alguma hesitação momentânea (e breve) a respeito de quem seria a autoridade competente para investigação do acidente.
Na esfera jurídica, por sua vez, houve intensa discussão a respeito da responsabilidade dos envolvidos, fossem eles piloto, copiloto ou controladores de voo. Foram denunciados, em primeira instância, os pilotos americanos que conduziam o jato Embraer Legacy e quatro controladores de voo.
A sentença de primeira instância que aqui disponibilizamos, condenou os pilotos do jato Embraer Legacy, à pena de quatro anos e quatro meses de reclusão, substituída por restritiva de direitos.
Em grau recursal, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, acabou reformando em parte a sentença, apenas para reduzir a pena para três anos, um mês e dez dias de detenção, e indeferiu a possibilidade de substituição da pena por restritiva de direitos.
Os recursos especial (REsp 1.458.012 e MC 22.795) e extraordinário (ARE 896843) interpostos pelos pilotos, foram negados, sendo mantidas a condenação e as penas impostas.
A leitura da decisão judicial revela entendimento no sentido de que não ter sido mero caso de erro dos pilotos, mas verdadeira imperícia, posto que se colocaram a voar a aeronave sem o devido preparo para o voo que fariam. Segundo se extrai, faltava-lhes a necessária familiarização com a suíte de eletrônicos, o que acabou redundando no desligamento (culposo, é verdade) do aparelho de transponder, por cerca de uma hora. Segundo conclusão judicial, durante todo esse tempo falharam gravemente nos deveres do ofício de pilotar aeronaves, uma vez que deixaram de promover a esperada supervisão dos instrumentos durante o transcorrer do voo.
Na denúncia ofertada pelo Ministério Público, se apontou, ainda, a falha por parte dos controladores de trafego aéreo. Um deles, a propósito, restou condenado perante a Justiça Militar, por homicídio culposo. Outro, pela Justiça Comum Federal de primeira instância, estando o processo ainda tramitando, em grau recursal, junto ao Superior Tribunal de Justiça. Outros dois foram absolvidos pela Justiça Federal Comum.
De tudo e ao final, a despeito do breve relato dos fatos como acima narrados, algumas considerações merecem anotação.
O primeiro registro diz respeito à peculiaridade do acidente aeronáutico enquanto fato(s) que repercute(m) na órbita penal e processual penal. Por certo, os processos envolvendo acidentes aeronáuticos tendem a apresentar marcha processual mais lenta que os demais, em vista das diversas circunstâncias e do complexo cenário fático com que se lida. Ainda assim, parece-nos que o sistema de justiça – e não é privilégio exclusivamente dos delitos aeronáuticos – acaba atuando de forma mais lenta do que dele se espera, reduzindo o sentimento social de justiça e punição.
O segundo registro diz respeito à própria atividade investigativa, de modo a ficar claro que a investigação de acidentes aeronáuticos não se deve fazer com intuito de busca de culpados, senão unicamente com objetivo de prevenir futuros acidentes. O bem maior a ser protegido, é a preservação de vidas humanas, por intermédio da segurança do transporte aéreo. Daí a importância de distinção entre os procedimentos investigativos, separando-se a análise jurídica, policial e judicial (com vistas a apuração de culpa) daquela estritamente fundada na prevenção (SIPAER) e conduzida pelo CENIPA.
Nesse passo, salientamos que o uso judicial de relatórios, de conclusões e de reportes voluntários obtidos pelo CENIPA, acaba não apenas por violar a Convenção de Chicago (anexo 13) e o Código Brasileiro de Aeronáutica (artigo 88-I,§2º), mas sobretudo coloca em risco a vida humana (art.88-C, do Código Brasileiro de Aeronáutica) e própria segurança da aviação.
As notícias e entrevistas veiculadas à época revelam que os pilotos do jato da Embraer (Legacy) acabaram deixando de fornecer oficialmente para o CENIPA, a sua versão dos fatos, justamente sob incerteza que pairava a respeito do uso do conteúdo das declarações que dariam. Assim foi que, orientados juridicamente – pois certamente temiam pelo uso daqueles reportes como fonte de prova para futura persecução penal – deixaram de se manifestar formalmente nos autos da investigação SIPAER. E a falta da colaboração espontânea, com a versão real do que de fato aconteceu, poderia em muito auxiliar na prevenção de outros acidentes.
Insta salientar, por oportuno, que a modificação no Código Brasileiro de Aeronáutica trazendo detalhada normatização a respeito da investigação dos acidentes aéreos, alinhando nossa legislação interna às previsões contidas na Convenção de Chicago, somente ocorreu no ano de 2014, por intermédio da promulgação da Lei federal n.º 12.970/2014.
Em terceiro registro, aponta-se a frustração advinda das dificuldades que estão sendo criadas pelo governo dos Estados Unidos, para que os pilotos que lá possuem domicílio, possam efetivamente dar início ao cumprimento de pena. Não por outro motivo a Secretaria de Cooperação Internacional da Procuradoria da República pediu a cooperação dos Estados Unidos. O objetivo do pedido de cooperação é garantir que a Justiça americana intime os pilotos americanos sobre o trânsito em julgado da condenação, informando que eles devem iniciar o cumprimento da pena, de forma a assegurar sua execução.
Em resposta ao pedido feito pela Procuradoria da República, o Escritório de Assuntos Internacionais do Departamento de Justiça Norte-americano alegou que o país “não possui mecanismos nem jurisdição para engajar o governo dos Estados Unidos a aplicar a sentença brasileira”[1]
Diante desse panorama, o Juiz Federal responsável pelo caso, acabou determinando a expedição de mandado de prisão e inclusão dos nomes dos condenados na base de dados da Interpol. Cite-se trecho importante da decisão que fundamentou a ordem de prisão: “As circunstâncias dos autos autorizam o estado brasileiro a fazer valer sua vontade sem observação dos tratados firmados, impondo, por essas razões, a expedição de mandado de prisão internacional – uma vez que os réus já deixaram muito claro que não virão ao Brasil cumprir a pena, e a jurisdição brasileira, de outra parte, não dispõe, por questão de soberania, de poderes para impor a sanção em território americano, como aconteceria, de resto, se estivéssemos diante de situação contrária.”[2]
Nesse cenário, então, aguarda-se, até hoje, o efetivo cumprimento das penas pelos condenados.
Fontes de pesquisas:
[1] https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/condenados-em-2011-pilotos-do-jato-legacy- envolvidos-em-acidente-do-voo-1097-tem-prisao-decretada-em-mt.ghtml
[2] Trecho retirado da decisão do Juízo de Sinop/MT, e que foi veiculado na reportagem citada acima.
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Clique nos botões abaixo para acessar a íntegra da sentença e acórdão que condenaram os pilotos do jato Legacy.