Autor: Paulo Henrique Stahlberg Natal
Data: 04/03/2021.
Situação bastante comum de acontecer durante as fiscalizações da Autoridade de Aviação Civil (ANAC) nas inspeções que realiza, é aquela em que se apura o cometimento de uma mesma espécie de infração reiteradas vezes pelo regulado. Essa situação, a título de exemplo, é bastante comum quando versa hipótese de falta de regular preenchimento do Diário de Bordo, seja quanto aos dados que deveriam constar, seja pela quantidade de vezes em que se operou sem a devida anotação; também é exemplificativa dessa situação, a reiterada operação da aeronave que não cumpre os requisitos de Diretriz de Aeronavegabilidade expedida pela Autoridade Competente.
Nestas situações acima citadas, não é incomum nos depararmos com processos administrativos em que se imputa ao regulado/interessado, dezenas, quando não centenas de infrações, por repetição da operação sem a observância dos requisitos da D.A[1]. ou, como no outro exemplo citado, pelo não preenchimento ou preenchimento incompleto (do Diário de Bordo) referente aos dados de cada uma das etapas do voo antes da saída da tripulação da aeronave após o término do voo (havendo uma infração para cada preenchimento equivocado ou omissão)[2].
Diante desse cenário relatado, o que se costumava ver das decisões administrativas da Agência Nacional de Aviação Civil, era a imposição de uma multa para cada uma das vezes em que se apurou a irregularidade. Por exemplo: Se o operador realizou duzentos voos, sem cumprir com requisitos de Diretriz de Aeronavegabilidade, teria cometido duzentas infrações, de maneira que o valor da multa seria multiplicado pelo número de tais infrações. Assim, ante a regra do cúmulo material de infrações, nos deparávamos com elevadas cifras a título de penalidade, evidenciando verdadeiras penas desprovidas de proporcionalidade e razoabilidade.
Até aqui fizemos questão de usar o tempo verbal passado, porque a partir de 12 de junho de 2020, sobreveio alteração normativa no âmbito da ANAC, reconhecendo a aplicabilidade do conceito de infração continuada no âmbito administrativo sancionador daquela Agência. Nesse sentido, a Resolução n.º 566, de 12.06.2020, emendou a Resolução n.º 472, de 06 de junho de 2018, para prever expressamente nos artigos 37-A e B, a caracterização da infração administrativa continuada. Assim o fez:
Art. 37-A. Poderá ser caracterizada infração administrativa de natureza continuada a prática, pelo mesmo regulado, de mais de uma ação ou omissão que configurem infração administrativa de natureza idêntica, apuradas em uma mesma oportunidade fiscalizatória. (Incluído pela Resolução nº 566, de 12.06.2020)
Parágrafo único. Será afastada a caracterização da infração continuada quando constatada a existência de prática ou circunstância que evidencie violação, pelo agente infrator, ao dever de lealdade e boa-fé que rege as relações entre administrado e Administração. (Incluído pela Resolução nº 566, de 12.06.2020)
Art. 37-B. Caracterizada a natureza continuada das condutas infracionais, nos termos do art. 37-A desta Resolução, será aplicada multa, considerando-se o patamar médio da tabela constante na Resolução específica vigente à época da infração, calculada de acordo com a seguinte fórmula: (Incluído pela Resolução nº 566, de 12.06.2020)
Valor total da multa = valor da multa unitária * quantidade de ocorrências1/f Em que a variável “f” assume um dos seguintes valores: f1 = 1,85 quando não verificada qualquer circunstância descrita nos incisos I a V do § 2º do art. 36 desta Resolução. f2 = 1,5 quando verificada ao menos uma das circunstâncias descrita nos incisos I a V do § 2º do art. 36 desta Resolução. f3 = 1,15 quando verificadas, cumulativamente, as circunstâncias descritas no inciso III e no inciso IV do § 2º do art. 36 desta Resolução. § 1ºA verificação de cada circunstância descrita nos incisos I a III do
§ 1º do art. 36 desta Resolução ensejará o acréscimo de 0,15 ao valor da variável “f” a ser aplicada.
§ 2º Valores diferentes de f1, f2 e f3 poderão ser definidos em Resolução específica que disciplina a matéria objeto da autuação. (Incluído pela Resolução nº 566, de 12.06.2020)
Diante da redação da normativa, logo se extraem os requisitos para configuração dessa modalidade continuada: 1) requer identidade subjetiva, ou seja, é preciso que tenham sido cometidas pelo mesmo agente; 2) pressupõe pluralidade de ações ou omissões, não sendo o caso de sua aplicação nos termos da regra quando uma única ação/omissão provoque múltiplas violações; 3) do ponto de vista material, exige-se que as infrações tenham natureza idêntica; 4) por fim, o último requisito é aquele atinente à unicidade fiscalizatória, de maneira que as infrações devem ter sido apuradas numa mesma ocasião, num mesmo e único ato fiscalizador.
Voltando aos exemplos citados no início deste artigo, vemos que, no caso de uma fiscalização levada a efeito pela ANAC, em que se verifiquem a operação de diversos voos com uma aeronave, sem que tenham sido cumpridos os requisitos de uma D.A. para a mesma, estaremos diante de diversas ações, praticadas pelo mesmo operador, cujas infrações têm natureza idêntica, e por fim foram aferidas numa única ação fiscalizatória. Nesse caso emblemático, pode-se concluir que há a denominada infração administrativa continuada.
Em que pese o reconhecimento normativo no âmbito da Agência de Aviação Civil estar datado de meados do ano de 2020, a situação não era desconhecida das lides forenses.
O Superior Tribunal de Justiça já possui há algum tempo entendimento no sentido de reconhecer como infração continuada aquelas hipóteses em que a Administração, no exercício de seu poder de polícia, constata, numa mesma atuação fiscalizatória, a ocorrência de diversas infrações da mesma natureza; resultando daí a possibilidade de aplicação de multa singular, afastando-se, por conseguinte, a cobrança cumulada da totalidade das infrações constadas. Nesse sentido, citem-se os seguintes precedentes:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. ART. 1.022 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. VIOLAÇÃO NÃO CONFIGURADA. DIREITO ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO CONTINUADA. MESMA OPORTUNIDADE FISCALIZATÓRIA. OCORRÊNCIA DE DIVERSAS INFRAÇÕES DA MESMA NATUREZA. APLICAÇÃO DE MULTA SINGULAR. ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. INCIDÊNCIA. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DESCABIMENTO. I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 2015. II - O art. 1.022 do Código de Processo Civil de 2015, cabe a oposição de embargos de declaração para: i) esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; ii) suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento; e, iii) corrigir erro material. Vício não configurado. III - Verifico que o acórdão recorrido adotou entendimento consolidado nesta Corte, segundo o qual a sequência de várias infrações de mesma natureza, apurados em uma única autuação, é considerada como de natureza continuada e, portanto, sujeita à imposição de multa singular. IV - In casu, rever o entendimento do Tribunal de origem, no sentido de redistribuir o ônus de sucumbência, demandaria necessário revolvimento de matéria fática, o que é inviável em sede de recurso especial, à luz do óbice contido na Súmula n. 7/STJ. V - Não apresentação de argumentos suficientes para desconstituir a decisão recorrida. VI - Em regra, descabe a imposição da multa, prevista no art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil de 2015, em razão do mero improvimento do Agravo Interno em votação unânime, sendo necessária a configuração da manifesta inadmissibilidade ou improcedência do recurso a autorizar sua aplicação, o que não ocorreu no caso. VII - Agravo Interno improvido.(AIRESP - AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - 1782525 2018.02.30025-5, REGINA HELENA COSTA, STJ - PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:16/05/2019).
ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. PRETENSÃO DE REEXAME FÁTICO PROBATÓRIO. INFRAÇÃO CONTINUADA. MESMA OPORTUNIDADE FISCALIZATÓRIA.OCORRÊNCIA DE DIVERSAS INFRAÇÕES DA MESMA NATUREZA. APLICAÇÃO DE MULTA SINGULAR. CONSONÂNCIA DO ACÓRDÃO RECORRIDO COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE.
I - Como a decisão recorrida foi publicada sob a égide da legislação processual civil anterior, observam-se em relação ao cabimento, processamento e pressupostos de admissibilidade dos recursos as regras do Código de Processo Civil de 1973, diante do fenômeno da ultratividade e do Enunciado Administrativo n. 2 deste Superior Tribunal de Justiça.
II - A alteração das conclusões adotadas no Tribunal a quo, de que em uma única autuação/fiscalização a ANP constatou uma sequência de infrações da mesma natureza, o que caracteriza a infração continuada (fl. 970), demandaria, necessariamente, o revolvimento do acervo fático-probatório dos autos, procedimento esse vedado em sede de recurso especial, conforme óbice previsto no enunciado n. 7 da Súmula do STJ.
III - Ainda que assim não fosse, no que concerne à alegada violação do art. 71 do Código Penal e do art. 3º, IX, da Lei n. 9.847/99, sem razão o recorrente, posto que o aresto vergastado está em consonância com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que há infração continuada quando a administração pública, em uma mesma oportunidade fiscalizatória, constata a ocorrência de diversas infrações da mesma natureza, o que enseja a aplicação de multa singular. Nesse sentido: AREsp 1129674/RJ, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, Julgamento em 11/09/2017, Dje 14/09/2017; REsp 1041310/SP, Rel.Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 27/5/2008, DJe 18/6/2008.
IV - Agravo interno improvido. (AgInt no REsp 1666784/RJ, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/03/2018, DJe 21/03/2018).
Em conclusão, entendemos ter havido o alinhamento entre a Autoridade Administrativa e Reguladora e o entendimento jurídico que já vinha sendo adotado de forma majoritária pelos Tribunais, inclusive alhures exemplificado na unificação interpretativa da legislação federal pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça. Com essa situação, se ganha em termos regulatórios sob o aspecto da segurança jurídica, e sob o viés do regulado, confere-lhe maior justiça na aplicação das penalidades, pois se atenta aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
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[1] Alínea 'e' do inciso III do art. 302 do CBA (Código Brasileiro de Aeronáutica) c/c seções 39.5-I e 39.7 do Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) 39.
[2] Artigo 302, inciso II, alínea "a", da Lei nº 7.565/86 c/c item 9.3 da IAC 3151.
Autor: Paulo Henrique Stahlberg Natal
Data: 04/03/2021.